Avanço da vacinação contra a covid aumenta a desigualdade no mundo
O Chade é um deles. Com 15 milhões de habitantes, o país só deve receber as primeiras doses da Pfizer em junho. Médicos e enfermeiros ainda não foram vacinados. Também não começaram a vacinação Burkina Faso, Eritreia, Burundi e Tanzânia – que, em fevereiro, disse que não pretendia “aceitar” vacinas. Pequenas ilhas do Pacífico, como Vanuatu, também não iniciaram campanha de vacinação, mas têm menos urgência porque não registraram grandes surtos.
O cenário preocupa especialistas. A OMS estima que a lenta vacinação em alguns países pode prolongar a pandemia. Os grandes laboratórios afirmam que seria possível imunizar a maioria da população mundial até o final de 2021, mas especialistas alertam que países mais pobres podem conseguir terminar a inoculação apenas em 2024.
O cenário favorece o surgimento de novas variantes, mais contagiosas e letais, como as cepas identificadas na África do Sul e na Índia, que podem ser resistentes às vacinas, comprometendo a imunidade em todo o mundo. “Nós já sabemos que uma variante, a sul-africana, é menos suscetível à proteção da vacina da AstraZeneca”, afirma o epidemiologista Chris Beyrer, da Escola de Saúde Pública da Universidade Johns Hopkins. “Enquanto as pessoas mais suscetíveis não forem imunizadas, o vírus continuará evoluindo, e isso pode minar a geração atual de vacinas”.
As causas para a desigualdade no acesso às vacinas são muitas. A primeira, mais óbvia, é de ordem econômica. Países mais pobres têm dificuldades para comprar doses e enfrentam problemas de infraestrutura e distribuição. O ‘nacionalismo da vacina’, ou concentração de vacinas por parte de países ricos, é outra – como poucas vacinas foram aprovadas e a capacidade de produção é limitada, nações que conseguiram encomendar grandes estoques saíram na frente.
Além disso, a logística é um grande problema. “As vacinas que usam RNA mensageiro (como Pfizer e Moderna) são muito eficientes e muito seguras. Mas são difíceis de fazer, armazenar, distribuir”, explica Beyrer. A quebra de patentes, posição agora defendida pelos EUA, não seria uma solução mágica, acredita. “É uma ciência muito avançada, e levantar as patentes não mudaria nada no curto e médio prazo, porque precisaria haver uma transferência significativa de tecnologia e de capacidade de construção (de laboratórios). É um investimento que vale a pena, mas levará tempo.”
A preocupação se estende a países que já adquiriram vacinas, mas não conseguem acelerar suas campanhas. Quase 30, entre eles África do Sul, Austrália e Armênia, aplicaram a primeira dose em menos de 1% da população. Só 20 países ultrapassaram a marca de 50%. A imunização com vacinas de menor eficácia – como a russa Sputnik e a chinesa Sinovac – também pode ser um problema. “Há múltiplas vacinas agora, mas poucas têm alta eficácia. Temos casos como o do Chile, onde há alta cobertura, mas não há diminuição em taxas de infecção e hospitalização”, afirma Beyrer. Mais de 90% das doses administradas no país até o momento são da Coronavac.
A falta de investimento em produção e distribuição de vacinas também têm consequências econômicas. De acordo com a Statista, empresa alemã especializada em mercado, a previsão é de que as principais economias do mundo registrem uma perda de 4,5% do PIB em razão da pandemia.
Um estudo publicado em março na revista Science afirma que investimento extra no desenvolvimento e aplicação de vacinas poderia ter economizado trilhões de dólares em todo o mundo. De acordo com o estudo, se os governos tivessem investido para acelerar as campanhas em três meses, US$ 700 bilhões seriam economizados – ou US$ 1,3 trilhão, se forem contabilizados os custos de saúde, em um cálculo conservador.
Algumas ações vêm sendo tomadas para reverter o cenário. O consórcio Covax, mecanismo da OMS para distribuição de vacinas, forneceu 71 milhões de doses, a maioria para países pobres. Alguns governos, como EUA e Suécia, anunciaram doações excedentes. Pfizer e União Europeia doaram 100 milhões de doses para países de baixa e média renda.
Para a diretora do Departamento de Imunização da OMS, Katherine O’Brien, as medidas são bem-vindas, mas outras precisam ser tomadas. “A doação de países que compraram muitas doses precisa acontecer em grande escala”, afirma. “Eles também podem trabalhar com as empresas que fornecem as vacinas para que elas sejam prioritariamente entregues ao Covax”.
O’Brien destaca que não há vacina suficiente para imunizar toda a população global. Por isso, defende prioridades. “Os meios de alocar vacinas precisam ser baseados em termos de necessidade e de impacto para a saúde pública, não em base de competição por contratos e em quem pode pagar”, afirma. Produtores de vacina, segundo ela, deveriam priorizar o compartilhamento de insumos com outros países, que também poderiam fabricar suas doses.
Para O’Brien, o desenrolar das campanhas de vacinação amplia as desigualdades. “Se falharmos em responder à desigualdade que já existe em relação às vacinas, com certeza isso poderia tornar a desigualdade geral ainda pior”, afirma. “Nenhum país está salvo até que todos estejam a salvo.”
Brasil
Para a professora do Coppead/UFRJ Cláudia Araújo, países menos desenvolvidos, como o Brasil, enfrentam desafios específicos. “Sofremos mais com questões de transporte e armazenagem do que países menores, mais desenvolvidos, que têm infraestrutura e estradas melhores”, afirma. “Temos dimensões continentais. Então, nosso grande desafio é manter as propriedades e a qualidade da vacina por todo o deslocamento dentro do território nacional.”
Para ela, a pandemia evidenciou uma grande dependência em relação aos países mais ricos. “O setor de saúde é muito dependente de poucos fabricantes. Vimos isso não só com a vacina, mas com materiais, equipamentos, EPIs”, afirma. “Com a pandemia, o mundo se deu conta de que a estrutura produtiva precisa ser repensada.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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