A cada um o que merece

A inferência se ancora em boa lógica: as águas do São Francisco podem ser fator preponderante para Bolsonaro sair bem das urnas no Nordeste. Já entraram no Rio Grande do Norte, propiciando grande comício em Jardim de Piranhas, na região do Seridó, e um levantar de braços para os céus como só se viu, segundo depoimentos de insuspeitos, na passagem de frei Damião em tempos idos.

Expliquemos o projeto. O Rio São Francisco, o Velho o Chico, possui aproximadamente 2.830 quilômetros de extensão, com sua nascente localizada na Serra da Canastra, em MG, e um curso natural que percorre os estados da Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe, atingindo sua foz no Oceano Atlântico.

O projeto de transposição interfere no trajeto do rio, fato que tem gerado discussões. Trata-se de puxar as águas do São Francisco, a partir de Juazeiro, na Bahia, e trazê-las até 390 municípios de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, proporcionando segurança hídrica a 12 milhões de nordestinos.

As obras abarcam a construção de dois grandes canais (um Eixo Norte e um Eixo Leste, totalizando 477 km em obras), levando as águas para as regiões do Polígono das Secas. A previsão, ao fim das obras, é abastecer 4, 5 milhões no Eixo Leste e 8 milhões no Eixo Norte).

Uma façanha, sem dúvida, principalmente quando se olha o Nordeste, com 28% da população brasileira, atravessar ciclos de intensas carências, assolado pelas secas. Meu pai conta que na seca de 1915, ele, com 20 anos, viu famílias assando sapatos em fogueiras para comer. Este escriba viu as agruras da seca de 1958, quando milhares de famílias faziam fila para pegar alimentos nas barracas do DNOCS.

Dito isto, abramos a história. Conta Marco Antônio Villa, no livro “Vida e Morte no Sertão” que a proposta de levar água do São Francisco para a bacia do rio Jaguaribe, no Ceará, “foi lançada em 1818, no governo de d. João 6º, pelo 1º ouvidor do Crato (CE) José Raimundo de Passos Barbosa”. E prossegue lembrando que, em 1847, Marcos Antônio de Macedo, intendente do Crato, “retomou a ideia e encaminhou um esboço do projeto ao imperador. Em 1852, d. Pedro 2º contratou o engenheiro Henrique Guilherme Fernando Halfeld para estudar o São Francisco. Em 1860, ele defendeu a transposição e citou Cabrobó como local de retirada da água”.

Em 1909, surgiu a Inspetoria Federal de Obras contra a Seca e, em 1920, o presidente Epitácio Pessoa realizou as primeiras obras de utilização das águas do São Francisco, com a criação de 205 açudes e 220 poços alimentados pelo rio.

Nos anos de chumbo, o ministro Mário Andreazza apresentou proposta para a transposição, incluindo os rios Parnaíba, São Francisco e Tocantins. Ficou no papel. Chegamos ao governo Itamar Franco, que substituiu Fernando Collor.

Aluízio Alves, no comando do Ministério da Integração Nacional, em 1994, desenterrou o pacote de Andreazza, convocou um empresário, Abelírio (Bira) Rocha, que, em 7 meses, apresentou o projeto de engenharia da transposição, contando com a participação de 300 técnicos. Havia interesse contrário dos proprietários do polígono da maconha. Na Bahia, argumentos acirravam a questão: a transposição iria matar o rio e não haveria água para mover as turbinas de Paulo Afonso.

O presidente Fernando Henrique, depois de prometer em campanha (1994 e 1998), desistiu de realizar a transposição. Motivos: relatório de impacto ambiental encomendado pela Integração Nacional anunciava que a obra derrubaria até 10% a produção de energia da Chesf (a central hidrelétrica que utiliza as águas do rio) entre os reservatórios de Itaparica e Xingó. Seria um efeito colateral politicamente indefensável em tempos de racionamento de energia.

Durante o governo de Luiz Inácio, a transposição foi o maior projeto de infraestrutura do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). A obra teve início em 2007, com a meta de construir 720 mil metros de canais para trazer a água para abastecer açudes e rios intermitentes de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Foi alvo de muitas críticas, envolvendo até o bispo de Barra (Bahia), dom Luís Flávio Cappio, que fez duas greves de fome, isso em 2005 e 2007. Tinha o apoio de parcela importante da opinião pública e setores organizados. Diziam que os custos eram altos e a transposição iria beneficiar apenas grandes proprietários. E o rio acabaria morrendo. Obras foram retomadas, sob o comando do ministro da Integração Nacional do governo Lula, Ciro Gomes.

Em março de 2017, Michel Temer inaugurou o trecho leste da transposição, na cidade de Monteiro (PB), dando continuidade ao projeto.

Do que se narrou, desponta a pergunta: é justo que ele, Bolsonaro, leve todas as glórias desse feito? A resposta é não. Justiça, na visão dos filósofos, é dar a cada um o que cada um merece.  Protagonistas dividem com Bolsonaro o mérito da transposição.  

Gaudêncio Torquato é jornalista, escritor, professor titular da USP e consultor político Twitter@gaudtorquato

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