A questão da educação com perspectiva de gênero

Toda vida humana merece igual respeito e consideração. Cada pessoa é intrinsecamente digna e tem o direito de ser o que é e de buscar sua própria felicidade à sua maneira, desde que, obviamente, não viole direitos alheios. Essa premissa (conforme apontado pelo filósofo e jurista Ronald Dworkin) configura o “terreno comum” da democracia, unindo adeptos das mais diversas doutrinas, matizes e orientações políticas e jurídicas. Emergem daí os direitos à autodeterminação do próprio gênero e à definição da orientação sexual, conforme os artigos 1º, inciso III, e 3º, inciso IV, ambos da Constituição Federal, entre tantos outros dispositivos normativos.

Ninguém com mínima formação humanística há de concordar com o desrespeito, a rejeição ou o desprezo à dignidade das pessoas transgêneros, transexuais e travestis, para quem a violência ainda é situação constante. Por isso, o direito trata tais atos como racismo social e intolerância (também chamados de crimes de ódio, conforme decidido pelo Supremo Tribunal Federal no Mandado de Injunção 4733 e na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26). Nos termos da Convenção Interamericana Contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, recentemente internalizada pelo Brasil com força de emenda constitucional, a intolerância pode “manifestar-se como a marginalização e a exclusão de grupos em condições de vulnerabilidade da participação em qualquer esfera da vida pública ou privada ou como violência contra esses grupos.”

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), na sua paradigmáticaiConsultiva 24/2017, reconhece que as pessoas LGBTI+ frequentemente sofrem discriminação sob a forma de preconceito, estigma e exclusão social, que permeiam os espaços da educação, a pretexto de “proteção da cultura, religião e tradição”. Logo, é obrigação dos Estados erradicar essas práticas, cultivando um sentido de empatia pela orientação sexual e a identidade de gênero como parte inerente de toda pessoa. Identidade de gênero, mais que realidade social, é categoria jurídica a ser respeitada por todos.

De outro lado, temos uma expressão de  sonoridade parecida com “identidade de gênero”, mas com sentido bastante diferente: “ideologia de gênero”. É a ideia incorreta e pejorativa de que o ensino sobre gênero nas escolas implicaria riscos às crianças e adolescentes, o que infelizmente tem também mobilizado o trabalho de entusiastas do projeto denominado “Escola sem partido”.

É importante registrar que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos – que faz as vezes de verdadeiro “Ministério Público das Américas” –, ao analisar a situação do Brasil, concluiu que o programa “Escola sem partido” possui um grande potencial de violar o direito à educação, que “deve capacitar todas as pessoas para participar efetivamente de uma sociedade democrática e pluralista, conseguir uma subsistência digna, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades em prol da manutenção da paz”, nos termos do art. 13 do Protocolo de San Salvador. E mais, reconheceu que a educação com perspectiva de gênero é “uma ferramenta essencial para combater a discriminação e a violência contra mulheres e pessoas com diversas orientações sexuais e identidades de gênero”. Por isso, colidem com o Direito Internacional dos Direitos Humanos as leis que visam vedar o ensino de identidade de gênero.

O Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 526, reconheceu a inconstitucionalidade do § 5º, do art. 162, da Lei Orgânica do Município de Foz do Iguaçu, que vedava “em todas as dependências das instituições da rede municipal de ensino a adoção, divulgação, realização ou organização de políticas de ensino, currículo escolar, disciplina obrigatória, complementar ou facultativa, ou ainda atividades culturais” que tendessem  a aplicar a “ideologia de gênero”. Em 29 de junho de 2020, o STF também reconheceu,  na ADPF 460, sem divergência, a inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 2º da Lei 6.496/2015 do Município de Cascavel-PR, que vedava a adoção de políticas de ensino que tendessem à aplicação da “ideologia de gênero”, utilizando o termo gênero ou orientação sexual. No julgamento da ADPF 600, o ministro Roberto Barroso reconheceu a inconstitucionalidade do artigo 165-A da Lei Orgânica de Londrina, que proibia a “adoção, divulgação, realização ou organização de políticas de ensino, currículo escolar, disciplina obrigatória, complementar ou facultativa, ou ainda atividades culturais que tendessem a aplicar a ideologia de gênero e/ou conceitos de gênero estipulado pelos Princípios de Yogyakarta”.

É na escola que jovens aprendem a valorizar e respeitar todos os seres humanos, assim como, no campo das relações interpessoais, afastar-se de atos de preconceito, discriminação, intolerância e abuso sexual, de modo que a educação sobre gênero deve lhes ser pedagogicamente ministrada. Postura diferente coloca a população infantojuvenil em risco por negar-lhes conhecimentos científicos sobre essa sensível e recorrente temática, contribuindo para o crescimento do bullying e da violência no sistema educacional, um dos principais fatores de evasão escolar no Brasil. Levando-se em conta especialmente que o sistema educacional é espaço de preparo para o exercício da cidadania, não há como impedir que professores tratem adequadamente desses assuntos em sala de aula.

Diante desse panorama, não parece haver muita dificuldade jurídica e ética em se dizer um sonoro sim para a “identidade de gênero” e um resoluto não ao espantalho argumentativo que cria uma inexistente “ideologia de gênero”, preservando o sistema educacional como ferramenta para diminuir a discriminação e a violência contra mulheres e pessoas com diversas orientações sexuais e identidades de gênero, com especial respeito e consideração à população que, dentre a população LGBTI+, enfrenta os maiores índices de violência, evasão escolar e desemprego e a menor expectativa de vida, que são as pessoas transgêneros, transexuais e travestis.

* Olympio de Sá Sotto Maior Neto é procurador de Justiça e coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos (CaopDH) do Ministério Público do Paraná. André Luiz de Araújo é promotor de Justiça e integrante do Núcleo LGBTI+ do CaopDH. Rafael Osvaldo Machado Moura é promotor de Justiça do CaopDH.

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