Dramas, tramas e tretas

Por Dartagnan da Silva Zanela (*)

Roger Bastide, nos chama a atenção para o fato de que não é suficiente ter um razoável conhecimento dos conceitos e teorias das ciências sociais para se compreender esse nosso Brasil brasileiro. Para realizar essa empreitada, segundo ele, é necessário que se tenha uma alma de poeta.

Bem, o que fora afirmado pelo sociólogo francês, em seu livro “Brasil – terra de contrastes”, na verdade é válido para todo e qualquer agrupamento humano, não apenas para a nossa brasílica sociedade.

O mundo, admitamos ou não, é muito mais complexo e profundo que nossos conceitos mesquinhos e teorias furadas a respeito de tudo e sobre todos.

Ora, em toda e qualquer sociedade encontraremos forças antagônicas e, essas belezuras, para o desgosto de marxistas, liberais, conservadores e tutti quanti, não se encontram perfeitamente esquadrinhadas em modelos teóricos pré-concebidos, onde cada um dos entes sociais encaixasse direitinho em um quadrado conceitual pré-fabricado.

Feliz ou infelizmente, esse trem fuçado chamado realidade tem essa mania bardosa de zombar da nossa tendência marota de querer reduzi-la a pequenez do nosso entendimento.

Dito de outro modo, quando nos habituamos a recortar os fatos e avaliá-los unicamente a partir das teorias e conceitos que dão forma à nossa maneira de ver o mundo, ao invés de abarcarmos toda a complexidade que se faz presente na realidade, acabamos por mutilá-la, deformando-a para que a mesma possa se encaixar, de forma bem comportada, em nossa cabeça de alfinete diplomada e, ao fazermos isso, a realidade deixa de ser ela mesma, para parecer algo que nós esperamos que ela seja e, assim, poder confirmar aquilo que gostaríamos de dizer a respeito daquilo que nós, de forma obtusa, não queremos compreender de jeito algum.

Ora, quando reduzimos a realidade social a um mero conjunto de esquematismos, sem querer querendo, acabamos por desdenhar incontáveis antagonismos e divergências que existem no interior das forças antagônicas que se digladiam na sociedade e, de quebra, acabamos ignorando os movimentos de assimilação e acomodação que se orquestram.

Podemos repetir, o quanto quisermos, que estamos lutando contra o “fascismo”, contra o “comunismo”, que estamos defendendo a “família”, as “minorias”, que estamos salvaguardando o “livre-mercado” e a “civilização ocidental”, podemos dizer que estamos fazendo isso tudo e muitas outras coisas, mas se nós ignoramos a complexidade da vida, todas essas supostas “lutas” serão apenas manifestações – distintas e complementares – de histeria coletiva, fantasiadas de cidadania e sambando ao ritmo do batuque de supostas boas-intenções.

Quando damos preferência a tacanhez de conceitos rotos (que dizem “tudo” sem explicar nada), ao invés de voltarmos nossos olhos diretamente para a vida de carne e ossos, acabamos perdendo de vista todos os jogos de contrastes que dão forma e movimento a todos os dramas, tramas e tretas de uma sociedade.

O historiador José Murilo de Carvalho, que Deus o tenha, também nos chamava a atenção para isso, pois, infelizmente, muitas e muitas vezes, antes mesmos de tomarmos conhecimento a respeito do que iremos conhecer, refletir e compreender, lá estamos nós, com meia dúzia de palavras ocas, fantasiadas com paetês de suposta cientificidade, para enquadrar fenômenos e eventos que estão muito além das nossas avarentas medidas.

Muitas são as razões e motivos que podem nos levar a agir desse modo, muitas mesmo e, por isso, seria imprudente querer listá-las.

Porém, podemos levantar um ponto que, ao nosso ver, parece ser uma constante em nossos corações, pouco importando qual seja o ritmo ideológico que pulsa em seus átrios e ventrículos.

Essa constante, no caso, seria o fato de que, ao mesmo tempo em que nos sentimos muito animados para dizer o que o mundo deveria ser, pouco ou nada refletimos a respeito do que especificamente estamos querendo dizer com as palavras que frequentemente utilizamos.

Na verdade, raramente paramos para ponderar, para refletir sobre o que estamos dizendo com as palavras que repetimos feito um autômato e, muito menos, sobre a forma irascível que reagimos diante de outras tantas palavras.

E isso vale, em alguma medida, para todos nós, para cada um de nós. E já sabem: quem nunca, que atire a primeira pedra.

E é por isso, meu caro Watson, que a poesia – a poesia e a literatura – são tão importantes, senão mais importantes, para compreendermos os mundos humanos. Mais importantes que todas as ciências sociais juntas e misturadas.

A poesia e a literatura nos ensinam a olhar o mundo através dos olhos de outros. Elas nos ensinam a dizer com clareza o que vemos, a sentirmos de forma nítida e a pensarmos com clareza e lucidez.

A poesia, como bem nos lembra Manoel de Barros, é como uma minhoca. Isso mesmo! Uma minhoca.

Da mesma forma que esses animais anelídeos arejam o solo, tornando-o mais propício para o florescimento da vida, a poesia acaba fazendo o mesmo com a língua, com a nossa língua e, consequentemente, com a nossa capacidade de apreensão e compreensão da realidade.

Enfim, a poesia areja a nossa alma, que se vê cada vez mais sufocada pelos jargões publicitários e pelos cacoetes políticos que, sem dó, estreitam a nossa inteligência e amesquinha o nosso olhar.

(*) Professor, escrevinhador e bebedor de café. Mestre em Ciências Sociais Aplicadas. Autor de “A Bacia de Pilatos”, entre outros livros.

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