Os Yanomami são um paradigma ético mundial: precisamos salvá-los agora!

Por Jelson Oliveira*

As cenas são perturbadoras e nos enchem o coração de dor e indignação. Indígenas esquálidos, famintos e doentes, de quem foi retirada a mínima possibilidade de sobrevivência digna em seus territórios, espoliados pelo garimpo e demais forças do crime que contaram com a negligência e o incentivo das autoridades que, antes, deveriam coibi-las. A tragédia que se abate sobre os povos indígenas brasileiros, especialmente os Yanomamis, é um dos mais graves crimes já cometidos na história recente brasileira – já tão cheia de horrores. A gravidade da situação é ainda maior se pensarmos que aquela é apenas a ponta de iceberg da imensa crise ambiental, agravada nos últimos anos pelo negacionismo e pela atitude deliberada de entregar os bens naturais da nação às forças mais retrógradas, contando com o desmantelamento das estruturas e instituições criadas para garantir minimamente o ordenamento jurídico naqueles fundões da pátria, onde permanecem, esquecidos – não fosse pelo horror da tragédia – povos inteiros, vítimas da depredação que engole e mata, junto com eles, os rios, os animais, a floresta como um todo. O que se assiste é o resultado do descaso e da ignorância de todo o Brasil em relação à Amazônia, terra esquecida na geografia política, mas amplamente usurpada por quem extorque suas riquezas. 

O passo mais importante para a superação da crise tem a ver com o reconhecimento dos indígenas e de seus territórios como espaços éticos e políticos, lugar de vida e de sabedoria, onde se manifestam conhecimentos ancestrais e formas de viver que se contrapõem ao já reconhecidamente falido modo de vida da maior parte da sociedade moderna, responsável pela crise ecológica que coloca, neste momento, a vida na Terra em xeque. Cada um desses territórios representam um verdadeiro espólio moral da humanidade, uma prova de que é possível viver de forma mais integrada à natureza e usufruindo de seus bens sem destruí-los. Cada povo indígena é inventor de diferentes “cosmotécnicas” que incluem modos de caça e pesca, instrumentos de arte e de culto, religiosidades e expressões culturais, formas de relação interpessoal e com a natureza, conhecimentos medicinais e farmacológicos, geológicos, ecológicos e climáticos, traduzidos em crenças, mitos, contos, histórias e inúmeras formas de expressão. Esse tesouro acumulado através dos séculos se expressa no valor intrínseco de cada uma das vidas que agora estão em risco. E é esse tesouro que morre em cada criança vítima da malária, do mercúrio e da fome que se tornaram vizinhas, impedindo que suas famílias realizem a forma de vida que é sua. O que acontece com os Yanomamis, por isso, é mais um capítulo do choque civilizacional que tem levado à extinção das comunidades tradicionais e de todos os seres que vivem em seu entorno por mão desse “povo da mercadoria” que somos nós. Quando esses modos de vida se perdem, a humanidade fica mais pobre, mais refém do capitalismo desenfreado, cujo estilo de vida vendido como o único possível e desejável é aquele centrado na produção e no consumo desenfreado. 

Em sua obra O princípio responsabilidade, lançada em 1979, o filósofo alemão Hans Jonas insistiu na urgência de que o estilo de vida ocidental se readequasse à lógica própria do sistema planetário, que é frágil e limitado (uma exceção no meio do universo inerte) e, por isso, exige uma vida baseada na modéstia e na frugalidade, o que passa pela imposição de limites à ação predatória da humanidade. Desde então, a ganância tem nos aproximado cada vez mais do abismo, na medida em que os valores apregoados a todo canto nos impedem de ver o óbvio e de fazer o que precisa ser feito. 

Os Yanomamis estão aí, para testemunhar a desgraça desse céu que desaba sobre nós – para lembrar o título de uma das obras mais importantes para compreender os acontecimentos que estamos vivendo em pleno século XXI: A queda do céu, escrito pelo xamã yanomami Davi Kopenawa e pelo antropólogo francês Bruce Albert, não é apenas um dos relatos mais excepcionais do pensamento brasileiro, como, sobretudo, um dos mais importantes símbolos do patrimônio ético e político do povo Yanomami e dos povos indígenas brasileiros em geral. Ler esse livro é cada vez mais urgente, para que possamos compreender a gravidade dos fatos e, sobretudo, para que possamos reconhecer sua identidade, autonomia e contribuição para o futuro do nosso país. Os Yanomamis, afinal, que agora são vítimas, são também agentes de sua/nossa história a quem a sociedade brasileira deve reconhecer pleno direito de cidadania. Guardiões das florestas, eles são provas incontestes e radicalmente legítimas daquilo que toda a humanidade deve buscar: uma vida plena, garantida no contato respeitoso com a natureza em vista da garantia de que as gerações vindouras possam viver em um mundo habitável. Garantir que esses povos possam existir e resistir em seus modos de vida, significa restaurar a crença no bem comum, que é o horizonte último da ética e da política. Sem isso, teremos desistido da humanidade; porque sem os Yanomamis, teremos perdido o ideal do bem viver, o equilíbrio e os valores sem os quais a vida nesse planeta será apenas uma experiência de aridez e pobreza. Por viverem e serem quem são, os Yanomamis e todos os povos indígenas cuidam do que é essencial e traduzem os nossos soluços em vozes entrelaçadas. É preciso, agora, salvá-los, contra tudo e acima de todos.

*Jelson Oliveira é filósofo, professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).

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