Trabalho de profissional

Henrique Mecabô

Quem são os profissionais que vêm reformando a reforma tributária contra os interesses do Brasil?

“O Brasil não é pobre à toa; isso aqui é trabalho de profissional”. Essa frase irônica e icônica do economista Marcos Lisboa na década passada, infelizmente, nunca deixa de ser atual. Lisboa diagnostica repetidamente que o Brasil tem seu desenvolvimento barrado por grupos políticos e empresariais que cuidam apenas dos próprios umbigos em detrimento da pátria como um todo. É o que parece acontecer agora no Congresso. Tudo vem indicando que perderemos mais uma oportunidade de gerar mais riqueza na tão esperada discussão da Reforma Tributária no Senado, já tomada por diferentes profissionais que de fato trabalham estritamente em causas próprias. A frase de Lisboa que abre esse texto vai além da ironia.

A ideia de uma Reforma Tributária com algum modelo de imposto de valor agregado é levantada em Brasília há pelo menos 30 anos. Quando se trata de impostos, o leitor certamente já sentiu na pele que o Brasil cobra muito e cobra mal. Não estamos nem olhando agora para a primeira parte do problema, já que para cobrar menos impostos o Estado brasileiro teria de gastar menos e, para isso, precisaria passar por uma distante Reforma Administrativa – por ora, temos falado só de aumentar a arrecadação, nunca de diminuir gastos. A parte de cobrar mal, entretanto, é igualmente importante. O Brasil é o país do mundo todo onde as empresas mais levam tempo para organizar a papelada e pagar seus impostos – em média, 1.500 horas de serviço por ano que não são usadas para gerar riqueza, mas para organizar a comida do leão.

Isso acontece porque cada produto ou serviço enfrenta uma regra (e uma taxa) diferente por aqui. Em meio ao confuso emaranhado de regras, entender quanto pagar é, sim, bicho de sete cabeças. Nesse cenário, empresas que vão além do trabalho hercúleo de derrotar a besta e passam a domá-la podem, inclusive, buscar brechas, regrinhas especiais no meio da confusão, que permitam o privilégio de pagar menos. Foi assim que, recentemente, o famoso Sonho de Valsa deixou de ser bombom para ser rotulado como wafer, e que o McDonald’s deixou de vender “sorvetes” para vender “bebidas lácteas”. Originalmente, a Reforma Tributária vinha para simplificar tudo e acabar com quaisquer privilégios: uma regra única e uma mesma taxa que incidiria sobre o valor que fosse agregado ao longo da cadeia de produção. Mas foi aí que alguns profissionais entraram em ação.

Grupos de interesse organizados passaram a atuar no Congresso (em especial no Senado, onde os gabinetes são menos numerosos e mais permeáveis) para que essa simplificação generalizada tivesse exceções. Estamos falando de associações endinheiradas que representam setores específicos da economia e/ou empresas de relações governamentais que constroem relações por seus clientes nos gabinetes do executivo e legislativo. Esse trabalho de monitoramento legislativo e representação de interesses é legítimo e, em geral, muito bem feito – profissionais de relações governamentais monitoram cada movimento na pauta de cada comissão do Congresso, acompanhando a tramitação de projetos de lei com mais afinco do que a grande maioria dos gabinetes dos parlamentares que nós custeamos, e ainda sabem com quem falar sobre cada matéria.

Frequentemente o objetivo final é, de maneira bem informada, advogar por privilégios – no caso dessa reforma, vender que “ricos são os outros setores da economia, o nosso é essencial e precisa pagar menos impostos para se desenvolver e desenvolver a indústria nacional”.  É, verdadeiramente, trabalho de profissional. Aqui, o leitor poderia perguntar: se esse trabalho é legítimo, qual o problema? O problema é que, enquanto minorias econômicas se organizam para defender seus interesses, nós, a maioria desorganizada e desmobilizada, não temos quem advogue por nós. Nossa representação caiu na mão de outro grupo de profissionais: os políticos profissionais.

O negócio do político profissional é a busca do próximo mandato, não a defesa da população. O foco é pensar na próxima eleição, não em simplificações que melhorariam a vida de toda uma próxima geração. O político profissional, que supostamente nos representa, cede aos pedidos dos profissionais que de fato representam seus clientes porque pode garantir tranquilidade com seu nicho eleitoral e, com sorte, até o financiamento da próxima disputa. Quando somamos setores econômicos que pensam apenas em si próprios, como se a economia não fosse toda interconectada, com uma maioria de políticos que não quer saber de nada além da manutenção do próprio mandato, criamos distorções injustificáveis. Pra ficar em um exemplo: concessionárias de rodovias pagam menos de 10% em impostos enquanto nessas mesmas rodovias circulam veículos que pagam quase 50%.

É lógico: para que um setor pague menos, outro setor terá que pagar mais para a conta fechar. Os políticos profissionais não querem saber disso e vêm recriando os “regimes especiais”. Querem menos ainda saber que se a conta não fechar, o governo terá déficit, e que daí vai financiar a dívida para que todos nós paguemos. Com esse cenário que premia o oportunismo de grupos minoritários, o mesmo Lisboa da frase que abre esse texto cravou, em entrevista ao Estadão do último domingo, que essa reforma já toda reformada “confirma nossa teimosia com o fracasso”. Até o próprio governo, via Secretário Extraordinário da Reforma Tributária Bernard Appy, admite que o ideal seria a Reforma Tributária ter menos exceções. Regimes especiais de tributação vão voltando a ser o normal pros amigos do(s) rei(s), enquanto a regra geral sobra pros bobos da corte.

Além de simplificar muito menos do que poderia e deveria, nos ameaçando como contribuintes, a Reforma Tributária também nos ameaçou como munícipes, já que centralizava ainda mais o poder em Brasília. O Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), imposto que unificará tributos estaduais e municipais (ICMS e ISS), iria até Brasília para ser distribuído aos estados e municípios por um Conselho Federativo. Nisso, prefeitos que fizeram o trabalho de gestores profissionais atraindo investimentos e desburocratizando a abertura de negócios nos municípios não necessariamente veriam suas cidades recompensadas por isso, já que os tributos seriam divididos lá no Planalto Central. Governadores, prefeitos e seus cidadãos ficariam de pires na mão tentando reaver politicamente os impostos que geraram. Felizmente, o mais recente relatório da Reforma no Senado parece ter acabado com essa centralização, graças à mobilização de prefeitos e governadores.

É precisamente isso que nos falta: mobilização. Sem ela, pagaremos o preço – ou melhor, o imposto. Enquanto olhamos para pautas de costumes e esperamos a próxima lacrada do nosso parlamentar de estimação no Instagram, WhatsApp ou TikTok, um setor vai jogando a conta pro outro até que políticos profissionais deixem que ela caia no nosso colo. Há boas indicações de que o sistema tributário brasileiro deixará de ser o pior do mundo, mas ele poderia se tornar verdadeiramente simples se o eleitorado estivesse mobilizado em torno da pauta. Precisamos entender que a aparente incompetência que leva a políticas públicas disfuncionais, privilegiando poucos em detrimento dos muitos, é intencional e profissional. Como eleitores, precisaremos de atenção quase profissional à política para reverter esse quadro.

Henrique Mecabô, cascavelense de 27 anos, é mestre em economia pela Universidade de Toronto e cientista político pela Universidade McGill, no Canadá

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