Ontem partiu um aprendiz!

Faz alguns anos que tive um privilégio: conhecer um jovem aprendiz de oitenta anos. Parece contraditório, mas não é. Era um amigo meu que se dispunha a aprender a cantar quando escrevia os últimos capítulos da sua vida. Ele trazia consigo o desejo juvenil de cantar. Não havia cantado por muitas razões, uma delas que ele não tinha “voz”. Por isso ele fez a sua carreira na engenharia e, com afinco, construiu uma bela carreira. Os trabalhos que fazia, os fazia bem. Das pessoas que se aproximava, as tratava bem. Tinha talento para conectar as pessoas. Depois de aposentado se voltou para seus interesses mais genuínos. Em sua casa, bem-organizada, mantinha uma pequena oficina para atendimentos emergenciais. Não era uma profissão, era um hobby. Porém, ainda lhe faltava algo. Um de seus amigos o colocou em contato com um professor de canto e música da cidade. Os seus olhos brilharam. A sua paixão pelo canto se reacendeu. O meu amigo não teve dúvidas e começou as aulas. Explorou a teoria e a história da música. Conheceu e reconheceu a própria voz. Treinou e ensaiou muito. E, algum tempo depois, o meu amigo me liga:

– Hoje farei uma apresentação pública. O professor me convidou para cantar numa festa.

Ele estava empolgado. Da mesma forma, estava nervoso feito um adolescente frente às descobertas da vida. Ele encerrou dizendo:

– Você poderia passar aqui em casa para me dar uma carona até a festa?

É óbvio que sim. O que poderia ser mais gratificante do que estar presente num momento tão inspirador proporcionado por um amigo? Além da inspiração, a disponibilidade de ser aprendiz aos 80 anos nos mostra possibilidades de aprendizagem. Fala-se em diversidade e oportunidade. A diversidade ao trazer de volta e manter as pessoas com mais idade para nos dar motivação de criar soluções para problemas que os acometem e que vão nos acometer. Diminui-se o choque geracional e a diversidade cumpre o seu papel de enriquecer a experiência de vida de todos. A oportunidade se dá ao explorar um mercado em franca expansão. Enquanto existe vida, há paixão, renda e consumo. Enfim, ser aprendiz é uma questão de postura frente à vida. A neurociência esclareceu que a plasticidade cerebral permite que mantenhamos nosso nível de aprendizagem enquanto estivermos vivos, salvo se afetada por uma patologia. Carol Dweck advoga que a escolha do tipo de mentalidade é de cada um: mentalidade fixa ou mentalidade de crescimento. O que isso quer dizer? Há idosos com mentalidade fixa que não querem mais aprender, assim como há jovens que se recusam a aprender. Há idosos com a mentalidade de crescimento que se mantêm abertos à aprendizagem, assim como há jovens ávidos por aprender. Qual é a sua escolha?

Há alguns anos, numa sexta-feira à noite, passei pela casa do meu amigo e o levei para a festa. Usava seu melhor traje. Estava com a aparência serena e tranquila, mas o seu interior estava agitado como a de um menino que vai se encontrar com a amada. Ao me cumprimentar, gaguejou. Ao sair do carro, tropeçou. Para entrar na festa, escolheu a porta de vidro errada. Entramos e nos acomodamos. Ele tomou água. Eu tomei um café. A música começou com o professor tocando um repertório magnífico. De repente veio o convite. O meu amigo é apresentado. Ele pega o microfone e anuncia, La Barca:

– Dicen que la distancia es el olvido, pero yo no concibo esta razón…

E soltou a voz… Soltou o medo, a insegurança e a ansiedade que se transformaram em combustível para uma carreira que se iniciava aos oitenta anos. Cantou os seus boleros em festas, casamentos e bares. Ele se reinventou usando a conectividade e o propósito a partir de uma mentalidade de crescimento. Com isso, realizou um sonho da juventude que se manteve juvenil. Como num bom livro, o meu amigo escreveu o seu melhor capítulo no final de sua vida. Ontem o aprendiz partiu para cantar em outros palcos…

Moacir Rauber

Blog: www.facetas.com.br

E-mail: mjrauber@gmail.com

Home: www.olhemaisumavez.com.br

...
Você pode gostar também

Comentários estão fechados.