‘Haiti se tornou um vale-tudo das armas para exercer poder’
Qual é o contexto social atual no Haiti?
O povo haitiano, principalmente nas cidades, vive com medo de gangues e a violência prevalece no Haiti. O governo tem pouco apoio popular e é acusado de ter relações com muitas dessas gangues, assim como grupos opositores e alguns dos maiores empresários do país. No interior, embora o medo da violência seja menor, a situação econômica é desesperadora, com muito sofrimento e falta de alimentos. Os haitianos que estão em melhores condições de vida são aqueles que recebem remessas de dinheiro de parentes no exterior. O Haiti vive em instabilidade desde que Moise foi nomeado presidente. Além disso, a pandemia de covid-19 afeta fortemente a economia do país desde o ano passado.
Por que tantos haitianos têm acesso fácil a armas?
Após o fim da ditadura de Duvalier, ex-integrantes do Exército e ex-paramilitares mantiveram suas armas. Além disso, mais armas chegaram de países vizinhos, incluindo os EUA. Essas armas, na minha opinião, são compradas em mercados internacionais e estão relacionadas com o tráfico de drogas. O Haiti tem sido um polo do tráfico de drogas desde os anos 80, embora pequeno. Ao mesmo tempo, vemos políticos armando seus apoiadores e empresários poderosos armando seus aliados. O Haiti se tornou um ‘vale-tudo’ das armas, que são usadas para intimidar cidadãos em sequestros e usadas para exercer o poder. Recentemente, líderes civis opositores ao sistema de corrupção foram mortos no país.
Qual é o impacto do assassinato do presidente?
Moise não tinha o apoio de muitos haitianos, que estão aliviados de vê-lo fora do jogo. Mas o problema é que agora existe um vazio de poder e não está claro quem vai ocupar o cargo. O chefe da Suprema Corte, o sucessor imediato de acordo com a Constituição, morreu recentemente de covid-19, e Moise havia, de forma arbitrária, removido três integrantes da Corte alegando que tentavam dar um golpe político. Além disso, o cargo de primeiro-ministro está em transição, porque Moise nomeou outro interino ao cargo no começo da semana, mas a pessoa ainda não assumiu. Isso leva à possibilidade de atores internacionais se tornarem figuras-chave para determinar o que vai acontecer. Os desdobramentos devem clarear a situação.
Qual pode ser o papel desses atores internacionais?
Os atores internacionais podem ajudar o Haiti providenciando maneiras e, se necessário, recursos, que permitam aos haitianos se unirem em torno de um pacto de democracia representativa. Isso significa incluir no processo político parte da sociedade civil que foi deixada de lado por esses atores (especialmente pelo governo Trump nos EUA) e em prol do trabalho exclusivo com as elites. E isso significa acabar com as gangues financiadas pelas elites. Recentemente, a nova bancada haitiana na Câmara dos Deputados americana recomendou que os EUA fossem com força total atrás dessas elites, que usam contatos, instituições e recursos americanos para lavar dinheiro e cometer o crime de evasão fiscal, por exemplo.
E internamente, o que deve ser observado?
É bom observar o líder de gangues Jimmy Cherisier, também conhecido como Barbecue, que recentemente fez uma declaração dizendo que os povos sem voz do Haiti iriam se levantar e acabar com as elites econômicas e políticas que os sufocam. Essa é uma afirmação aceitável, mas os métodos de Barbecue, como ameaçar usar a força, não são aceitáveis pela maioria da população e dos atores internacionais.
Como pode haver estabilidade no Haiti depois disso?
O assassinato de Moise pode trazer estabilidade, ou ao menos a chance de construir uma ponte para isso, que vai depender de diversos fatores, entre eles o papel de EUA, ONU e OEA. Se esses atores externos insistirem em uma solução inclusiva de um governo interino que consiga liderar o país a um processo político de eleições, há uma chance de a tragédia de ontem levar a um futuro melhor. Se os atores internacionais derem ainda mais poder para as elites políticas e econômicas do Haiti e excluírem a sociedade civil, o país continuará em declínio.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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