‘Mantenho a expectativa de um futuro melhor’
“Caminhei nesse caminho tão universitário quanto político”, diz FHC em entrevista ao Estadão. Fazem parte da obra, de quase 300 páginas, a infância e mocidade numa família repleta de militares e políticos, a formação como sociólogo na USP, o contato com a nata da intelectualidade mundial, o exílio no Chile, a luta pela redemocratização do País, e claro, o “mergulho” na política.
O texto leve alterna estilos, inspirado em Machado de Assis e “à la (Joaquim) Nabuco”. O ex-presidente relembra mestres, conta casos saborosos e analisa obras de pensadores importantes na concepção do País. Algumas reflexões foram publicadas na colaboração que FHC mantém com o Estadão.
FHC completa 90 anos em 18 de junho. Diz que segue procurando ler e entender. “Pensar não é coisa fácil.” Em plena pandemia da covid-19, isolado, se mostra otimista. “É importante sempre manter a expectativa de um futuro melhor. Mesmo que ele não venha, você terá a expectativa.”
Sobre a conjuntura política, diz que Jair Bolsonaro tem de obedecer às regras da democracia e que ainda não desistiu de uma alternativa à polarização do atual presidente com Lula, mas que estaria disposto a conversar com o petista.
O senhor diz neste seu novo livro que a política, em sua família, vem do berço. No entanto, a leitura dele deixa claro o quanto o senhor hesitou em se afastar da vida acadêmica e intelectual para “mergulhar” na política. Hoje, prestes a completar 90 anos, se considera mais intelectual do que político?
Eu estou fora da política. Hoje, eu procuro pensar, ler, entender. Pensar não é uma coisa fácil. Sou presidente de honra do PSDB, mas é só de honra. No dia a dia, não tenho ligação com a política, mas com as ideias e a literatura. Eu tenho uma formação. O livro é focado nela muito mais do que na minha atividade política.
É possível pelo livro perceber que o senhor acompanhou atentamente a história brasileira. Aliás, nele, o senhor deixa claro sua veia de historiador…
Meu bisavô foi governador no Império, meu tio-avô foi ministro da Guerra na Revolução de 1932. Falar disso para mim é natural, não é pedantismo meu. Reunião na minha casa sempre foi para falar dos acontecimentos, isso embrenha a gente. Embora eu seja sociólogo de formação, sempre me referi à história, sempre procurei ter uma visão estrutural com algum assentamento na história, na vida. Há sociólogos que são totalmente abstratos e são bons. No meu caso, sempre faço referência a alguma coisa.
O senhor mantém essa curiosidade de pesquisador, que fica tão aparente no livro?
Creio que sim. Me surpreendo até hoje e procuro entender.
Com qual sentimento o senhor chega às portas dos 90 anos, com o País e o mundo em momento tão difícil?
É um mau momento, não é? Porque estamos limitados pela pandemia, mas eu espero que ela acabe, já vi muita coisa começar e acabar. Pode ser que eu acabe. Espero não morrer antes do fim da pandemia. É importante sempre manter uma expectativa de um futuro melhor. Mesmo que ele não venha, você terá a expectativa. Eu mantenho. Mas esse sou eu, cada um é de um jeito.
Em algum momento se arrependeu de ter deixado a vida acadêmica pela política?
Eu tinha que me dedicar às duas coisas, devido à minha formação. Você me perguntou se sou mais acadêmico ou político, eu fico na dúvida (risos). Neste momento, não tenho alternativa, eu escrevo, eu falo. Neste momento, não dá para querer ser alguma coisa na vida pública, também porque já fui. Não gosto muito de repetição, ainda que tenha sido reeleito presidente. Gosto de variar um pouco, cada um tem um jeito. Muitas vezes você é feito pelo caminho. Caminhei nesse caminho tão universitário quanto político.
A leitura dá uma ideia de que sua entrada na política se deu naturalmente, quase um acaso…
Ouvi muitas vezes dizerem que eu desde pequeno sonhava em ser presidente. Não é verdade isso, eu queria ser papa, não presidente, se pudesse, porque era católico. Foi um acaso até certo ponto. Há pessoas que não tiveram o mesmo passado que eu tive e foram presidentes, tem um que agora é presidente e não tem a mesma história. O importante é não estar com ideia fixa. Você acha que alguma vez na vida eu quis ser professor da Sorbonne? Não, isso vai acontecendo, mas é claro que não é por acaso, você tem de se preparar. Sempre li muito, meu pai lia muito. É necessário ler muito para ser presidente? Tem quantos presidentes que não leram nada e foram bons presidentes? Ninguém é modelo de nada, cada um é um. Não adianta ter obsessão por ser, tem gente muito melhor do que eu que não ganhou. E daí?
Falando na sua formação, o livro traz o momento em que o senhor iniciou a leitura de Marx e já naquele momento se deu conta de que o filósofo socialista não forneceria a única chave para explicar a sociedade brasileira. Qual seria a ferramenta ideal para entender o País de hoje?
O Brasil mudou muito. Eu nasci há quase 90 anos. Eu me lembro da Segunda Grande Guerra, que me alcançou por causa da minha família e tal, eu a segui como muito interesse. Depois, veio a redemocratização, outro fato forte aqui. Hoje, o Brasil já está com seu roteiro definido, é um país que tem um crescimento econômico, capitalista, ninguém discute mais hoje o que se discutia no meu tempo, que era qual o caminho a seguir. Esse caminho está dado até certo ponto. Encontramos mais espaço no mundo. A chave é viver de acordo com seu tempo. Nesse livro, eu me refiro ao passado, a meus professores, falo um pouco da minha família. Mas estou preocupado com o que vai acontecer. O Brasil está integrado ao mundo, o nosso compasso hoje é outro. Você precisa viver o seu momento, não adianta ficar pensando só no que foi ou no que vai ser.
O livro mostra que o senhor conviveu com a nata da intelectualidade mundial, Jean-Paul Sartre, Alain Touraine e tantos outros, que, como o senhor, eram do pensamento…
Quando você está vivendo isso, você não sente. Quando o Sartre veio ao Brasil foi uma grande comoção. Eu tenho uma grande lacuna na minha vida, eu não gosto de futebol. Uma desvantagem grande. Eu ia ainda menino ao estádio do Pacaembu com meus tios que eram cariocas, e eu sentia medo porque, nos jogos entre paulistas e cariocas, eles torciam para o Rio… Me faltou essa dimensão de uma participação mais ativa. Eu remava no Tietê, mas nunca fui muito ligado esse lado da vida, que é bom. Hoje faço ginástica para não ficar encarquilhado.
O senhor ainda acredita ser possível criar uma frente partidária para as eleições ou as divergências antigas entres os democratas, como o livro aponta em determinado momento, ainda persistem?
Eu acho necessário. A democracia não é dada para sempre, é preciso estar o tempo todo lutando por ela. É importante que exista uma união de forças para mantê-la, ainda que eu não ache que ela esteja a perigo no Brasil. Pode haver impulsos autoritários, mas não vejo que haja condições políticas para permitir um fechamento do regime, porque não há no mundo. Eu nunca fui sectário. Se for possível ter mais gente junta, acho que seria melhor. Se as oposições puderem se unir, melhor. É mais fácil vencer quando se está junto. Dentro das regras do jogo, é preciso manter as regras.
O senhor demonstra preocupação com o tema da juventude e com os partidos políticos. Há um distanciamento entre ambos?
Acho que há. Os mais jovens olham com desconfiança o sistema político porque não experimentaram a falta de liberdade. A despeito da fraqueza aparente deles, os partidos são importantes. A política parece ser uma coisa dos outros, não nossa, no Brasil. Mas é curioso, apesar disso, que os brasileiros gostem de eleição. É dia de alegria, de festa, e é assim porque tem partido, mandato. Seria bom se valorizassem um pouco mais a vida política. Mas os partidos são fechados também, têm dono.
Há um capítulo sobre a relação entre o nosso mundo digital e conectado com a polarização. É uma preocupação?
Sim, vivi momentos de muita polarização no Brasil, do nós contra eles. É perigoso e existe hoje no Brasil por parte de quem manda.
No aspecto político do livro, fica a sensação de que o senhor se ressente de não ter conseguido manter diálogo com o Lula, a Dilma e o PT. Ainda é possível?
Sim, dá para conversar com o Lula porque não sinto nele um sentimento de ser contra as regras. É bom manter contato. O distanciamento faz você imaginar o outro como inimigo. Eu nunca vi o Bolsonaro, nunca o vi. Eu não concordo com ele e isso é explícito, mas não quer dizer que eu queira matá-lo, eliminá-lo, nada disso. E ele vai ter que seguir a regra, ele pode ter o impulso que tiver, mas vai ter de seguir a regra. Enquanto tivermos uma regra que prevaleça, tudo bem, uns pensam de um jeito, outros, de outro. Melhor que não haja um sentimento de antagonismo. Sei que é um pouco utópico, mas é preciso haver regras, freios, a regra, a lei. Você não pode dizer tudo o que você pensa, você não vive sozinho, você vive com outro, que não é necessariamente seu inimigo.
É possível surgir uma mensagem alternativa à polarização?
Acho que precisa ter um caminho que não seja nem um nem o outro. Eu posso dizer isso ao Lula, mas não ao Bolsonaro porque não tenho contato. Eu não quero eliminá-los da vida política, mas posso ser favorável à existência de alternativas. Na vida política, ou você fala e, portanto, existe, ou não fala e não existe. Não é como na academia em que você faz um artigo, bota seu nome lá e pronto. Na política tem de convencer os outros.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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