Moisés da Rocha comanda há 44 anos o programa ‘O Samba Pede Passagem’, na Rádio USP
Aliás, que voz. Somando timbre aveludado, elegância vocal e vertendo simpatia ao microfone, Rocha enaltece o samba de norte a sul. Toca o velho, o novo, o clássico e o futuro, entrevista de baluartes a novatos e revelações. “Não precisa ser um Paulinho da Viola. Se for de qualidade, tem espaço”, brinca o radialista. “Mas tem de ter algo a dizer, o programa não é um mero vitrolão.”
CARAVANA. Fundo de Quintal, Zeca Pagodinho, Jovelina Pérola Negra, Reinaldo “Príncipe do Pagode”, Eliana de Lima, Leci Brandão. Artistas que antes de O Samba Pede Passagem estavam iniciando – portanto, ainda sem o carimbo das rádios – ou viviam uma entressafra encontraram o ponto de virada no programa e, a partir de 1985, também na Caravana do Samba, com shows no interior paulista.
“Em São Paulo, comecei com o Moisés da Rocha, que tocou o Raça Brasileira logo que foi lançado. Ele lançou toda uma geração”, diz Zeca Pagodinho, que integrou a caravana e é amigo de Rocha.
Fundador do bloco Cacique de Ramos e do grupo Fundo de Quintal, Bira Presidente conta uma história parecida. “O Moisés foi um dos primeiros a dar credibilidade ao Fundo de Quintal. Depois, todas as portas se abriram”, afirma Bira Presidente.
“Não fui o único, mas O Samba Pede Passagem deu o toque principal naquela geração”, recorda o radialista, que é de Ourinhos, no interior paulista. “Dar oportunidade aos jovens foi um marco e um acerto. O critério era: se for bom, tocamos.”
Em 2017, durante seu mandato na Assembleia de São Paulo, Leci Brandão assinou projeto para elevar O Samba Pede Passagem a Patrimônio Imaterial. “Ele (Rocha) é meu pai musical. Em 1985, estava havia anos sem gravar quando lancei meu disco. Ele tocou e o disco estourou. Devo a ele meu retorno.”
TRAJETÓRIA
Filho de lar tão humilde quanto musical – a mãe, Maria José, tocava cavaquinho e o pai, Benedito, violão -, Rocha debutou ao microfone em 1965, na extinta rádio paulistana Cometa. O passo seguinte foi uma espécie de PhD: no dial da Jovem Pan, conviveu com radialistas como Antônio Del Fiol, Fausto Canova, Joseval Peixoto e Wilson Fittipaldi.
Anos depois, passou pela Rádio Record. “Como eu sempre era o único negro e ganhava salário mínimo, tinha de ter mais fontes de renda. Ao me aperfeiçoar, transitei por diferentes emissoras como assistente de produção, repórter, locutor.” Paralelamente, era assistente de direção (e até ator) nas produções do dramaturgo Plínio Marcos, seu amigo.
Em 1977, um convite para a nascente Rádio USP, inicialmente como programador, mudaria sua vida. Não tardou a ouvir afagos. “Com essa voz, você tem de entrar no ar”, diziam. E assim foi: em 1978, começa O Samba Pede Passagem.
CASA CHEIA. Musical, sim, mas com subtexto social: “O programa nasceu como reação ao preconceito contra a cultura afro-brasileira. Nunca abri mão de divulgar valores culturais de matriz africana, de dar voz à periferia, à juventude periférica”.
Em sua época áurea, entre as décadas de 1980 e 1990, O Samba Pede Passagem virou megafone de parte da vida noturna da cidade. “Se o Moisés anunciasse uma festa, era certeza de casa lotada”, assegura um veterano produtor de eventos. E não apenas no samba: graças às parcerias com equipes de som como a Chic Show, ajudava a lotar os bailes black. Quando sentiu algo de novo no ar, Rocha introduziu no programa o quadro Cantinho do Rap, ajudando na afirmação do gênero que ainda engatinhava no Brasil.
Ao longo do tempo, o programa, que chegou a ser diário, perdeu espaço. Atualmente, vai ao ar aos sábados e domingos, das 12 às 14 horas. “Houve preconceito e até certa perseguição. Setores da USP achavam que o programa não condizia com a universidade, que não tinha linguagem acadêmica”, conta Rocha. Felizmente, ele garante, setores mais progressistas do câmpus, como a Escola de Comunicações e Artes (ECA), sempre o apoiaram.
As comemorações de 45 anos no ar em 2022 incluem um documentário já em produção. A fórmula da longevidade, ressalta, vem do tripé qualidade, comprometimento e oportunidade a novos talentos. E, claro, de sua profissão de fé: “jabá, não”. “O samba virou o que aí está por questões comerciais. As gravadoras há tempos inventaram o pagodinho fácil, sem harmonia, executado à exaustão porque paga”, afirma. “Fizeram com o samba o que é feito hoje com o sertanejo.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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