Retiro dos Artistas inspira Casa do Atleta para amparar ex-jogadores no Rio

Em tempos de pandemia do novo coronavírus, um projeto já aprovado em Volta Redonda surge como uma luz no fim do túnel para auxiliar ex-esportistas que enfrentam algum tipo de dificuldade ou estão em estado de abandono. É a Casa do Atleta. Um dos idealizadores da iniciativa é o ex-meia Delei, de 61 anos, hoje assessor especial da prefeitura da cidade fluminense.

A inspiração para criar a Casa do Atleta vem de uma instituição centenária: o Retiro dos Artistas, no Rio de Janeiro. “Sou muito amigo do Stepan Nercessian (os dois atuaram na política como deputado federal), que preside o Retiro dos Artistas há muito tempo. Eu sempre me encantei com esse cuidado com os artistas mais velhos. Ao longo do tempo, isso foi me despertando o desejo de fazer algo parecido no esporte. O objetivo desse plano é reintegrar e oferecer melhor qualidade de vida para pessoas que tiveram a prática do esporte como atividade. Falei com o prefeito sobre isso e ele topou”, afirmou Delei.

A prefeitura de Volta Redonda conta com a parceria dos governos do Estado e federal. Pelo projeto inicial, um prédio de seis andares com 36 apartamentos vai abrigar os esportistas. Ali eles terão moradia, alimentação, tratamento de saúde e assistência odontológica, fisioterápica, psicológica e nutricional. Na pauta tem ainda previsto auxílio financeiro para as despesas pessoais. O projeto vai contar também com a participação de assistentes sociais, que vão ajudar a selecionar os ex-atletas que estejam vivendo em condições precárias.

Eles vão morar em apartamentos com sala, cozinha, banheiro e quarto com cama de casal. No prédio vai ter ainda elevador, lavanderia, área de recreação e alimentação. O custeio mensal vai ser coberto por parceria público-privada. O terreno foi cedido pela prefeitura de Volta Redonda.

Para garantir todo esse aparato de benefícios aos ex-esportistas, Delei disse ter à disposição toda a estrutura da prefeitura. “O prédio vai ser construído perto do Estádio da Cidadania. Ali, nós temos 28 especialidades médicas que vão ser colocadas a serviço deles. Tudo que o Ministério Público exigir, nós temos condições de cumprir.”

CONSELHEIRO – Com a experiência de quem comanda o Retiro dos Artistas há 19 anos e lidera cerca de 40 funcionários na associação, Stepan Nercessian, 67 anos, falou dos cuidados que precisam ser tomados para abrir uma instituição com essas características. “O primeiro passo é pegar todas as exigências que o Ministério Público faz. Eles são muito rígidos e é necessário se adequar a elas (leis). Tem o Estatuto do Idoso. Com a experiência que tenho, procuro sempre ajudar quem está imbuído de um projeto desses”, afirmou o ator e escritor, que recentemente lançou o romance “Garimpo de Almas’.

A iniciativa de criar a “Casa do Atleta” foi aplaudida por Nercessian. “Isso é fundamental em qualquer profissão. Tinha de ter também a Casa do Jornalista, a Casa do Advogado, a Casa do Arquiteto e assim por diante. E o atleta tem uma característica distinta. A profissão tem auge e decadência e o seu período de utilidade é curto, aí é que precisa mesmo. É necessário um cuidado especial. Uma questão de dignidade”, afirmou ele à reportagem do Estadão.

Delei comentou que a pandemia do coronavírus atrasou o início das obras e que os custos estão sendo revistos. No entanto, apesar do momento delicado que o País vive, o ex-jogador disse ter a garantia do prefeito Antonio Francisco Neto (DEM) de que o projeto começa a sair do papel este ano.

CONTRAPARTIDA – A função social também está inserida na ação. De acordo com o ex-meia, uma contrapartida será estabelecida para que os ex-atletas do espaço possam usufruir dessa realidade. “Vamos estudar a melhor maneira de aproveitá-los. Pode ser a participação deles em clínicas, em palestras para os mais jovens, em visitas às escolas. Queremos trazê-los e também capacitá-los. Essa é a ideia de buscar uma ressocialização. E quem vai tomar conta diretamente disso sou eu. Vou ficar de olho, em cima, para que tudo saia da melhor maneira.”

De acordo com as regras do espaço, poderão ser inseridos na iniciativa esportistas que exerceram atividade profissional ou amadora, estejam em dificuldades financeiras, não tenham família ou necessitem de cuidados médicos. “Em qualquer desses casos, nós poderemos auxiliar os ex-atletas a buscar uma retomada com a dignidade que eles merecem”, afirmou Delei.

Dentro de sua equipe de trabalho na prefeitura de Volta Redonda, um velho companheiro de Fluminense acompanha Delei nos projetos que o ex-meia direciona para o esporte. O ex-zagueiro Tadeu, campeão carioca de 80, é responsável pela zeladoria dos campos e praças esportivas entre outras funções. “O Tadeu me ajuda muito. É uma espécie de braço direito.”

Ligado diretamente à imagem do Fluminense, time em que foi quatro vezes campeão estadual e também brasileiro, Delei tem uma trajetória relacionada às fundações de auxílio a ex-atletas e sindicatos de jogadores. Nessas entidades, ele pretende fazer uma varredura nos cadastros para ver quem precisa de auxílio. “Conheço muito bem essa realidade. Muitos não se prepararam para a aposentadoria. E, pior, muitos ainda vivem na ilusão do que fizeram e não se dão conta de que o tempo passou. As coisas não são mais como antes. Tenho muitos amigos daquela época em dificuldade”, diz.

Casos emblemáticos para ilustrar essa realidade não faltam. Há nomes do esporte que viveram a consagração nos gramados, que tiveram dias de ídolos, e depois mergulharam no ostracismo. Um deles foi o ponta-direita Marinho, principal jogador do Bangu na época em que o clube era comandado pelo bicheiro Castor de Andrade. Vice-campeão carioca e brasileiro de 1985, ele chegou a integrar o grupo da seleção na preparação para a Copa do Mundo de 1986, no México. Às vésperas do Mundial, porém, acabou cortado pelo técnico Telê Santana.

A derrocada de Marinho aconteceu no fim da década de 80. A perda do filho Marlon, de um ano e sete meses, que morreu afogado na piscina de sua casa enquanto ele dava entrevista a uma emissora de TV, foi um divisor na sua vida. A partir disso, o álcool foi a porta de entrada para o declínio. A separação da família foi outro duro golpe.

Por fim, já aposentado dos campos, ainda contraiu tuberculose e chegou a dormir sob viadutos na região de Bangu e Realengo. Tentou voltar ao futebol algumas vezes como treinador, mas os excessos já tinham minado a sua resistência. Com a saúde bastante debilitada, o então astro banguense passou o resto de sua vida numa casa simples, sem luxo algum e com dinheiro contado. Esquecido, morreu em junho do ano passado, aos 63 anos.

“Eu convivi muito com o Marinho. Fomos contemporâneos de profissão nos anos 80, e ele era uma das principais figuras do futebol carioca. E estamos falando de um tempo em que os clubes do Rio tinham elencos muito fortes. Infelizmente o que aconteceu com ele é muito comum. O futebol é uma ilusão e são poucos os jogadores que conseguem atingir um nível de independência financeira. A realidade é bem diferente”, disse Delei.

Dentre os nomes que estão no radar do projeto para serem auxiliados está um tricampeão do mundo. Delei, no entanto, disse que pretende manter a identidade em sigilo para preservar o ex-atleta. “É uma situação delicada onde muitos desses ex-atletas ficam constrangidos pela exposição. Temos de ter cuidado com isso e me preocupo em preservar essas pessoas. A intenção é ajudar”, comentou.

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