Lei Maria da Penha completa 14 anos

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Quando as histórias de violência cometidas contra as mulheres chegam ao conhecimento público é porque já se tornaram tragédias. Por traz dos incontáveis números de feminicídios – que nada mais são que os assassinatos de mulheres em decorrência da violência de gênero – existem histórias de vida atravessadas por práticas e comportamentos abusivos, que se repetem silenciosamente no cotidiano e que nossos olhos e ouvidos distraídos ignoram por se tratar de assunto privado.

Esse apagamento social que praticamos quando o assunto é violência contra a mulher se traduz muito bem na famosa expressão “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”. E assim seguimos alheios aos comportamentos abusivos. Somos mulheres e homens acostumados com as manchetes sangrentas que expõem o desfecho de muitas histórias de amor.

Maria da Penha Maia Fernandes é uma das milhares de mulheres brasileiras que teve sua vida marcada por uma história de violência praticada por alguém que ela conhecia, por alguém com quem dividia as contas de água e luz, a criação de das filhas, as memórias de um casamento e as intimidades de um casal que se apaixonou.

Maria da Penha sofreu duas tentativas de homicídio por parte de seu ex-marido, o colombiano Marco Antônio Heredia Viveros e sua história tornou-se popularmente conhecida porque simbolizava a busca de milhares de mulheres por justiça e para tornar visível os abusos e crimes cometidos no interior dos relacionamentos íntimos.

Impulsionados pela história de Maria da Penha, movimentos de defesa dos direitos humanos no Brasil e na América Latina levaram o caso para litígio internacional, que resultou na responsabilização do Brasil por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica praticada contra as mulheres brasileiras.

Desde 2006, a Lei nº 11.340/2006, nomeada Maria da Penha em sua homenagem, passou a ser referência para formulação e criação de regulamentações de defesa dos direitos das mulheres, como a Lei nº 13.104/2015, que define o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e a Lei nº 13.718/2018, que tipifica os crimes de importunação sexual e amplia o acesso à justiça para as situações em que a violência de gênero ocorre fora do âmbito doméstico e privado.

Neste dia 7 de agosto de 2020, a Lei Maria da Penha completa 14 anos. Apesar de ser difícil conhecer alguém que nunca tenha ouvido falar da Lei Maria da Penha – de fato, trata-se de uma das leis mais populares do nosso país, internacionalmente é considerada pela ONU (Organização das Nações Unidas) umas das três melhores leis voltadas para o enfrentamento da violência contra a mulher. – Ao mesmo tempo, é comum ouvir que “a Lei Maria da Penha não funciona” e essa frase vem seguida de um relato de alguém próximo que precisou da lei, fez a denúncia e não viu surgir nenhum resultado que responsabilizasse o agressor.

Essas afirmações acerca da efetividade da Lei Maria da Penha, apesar de serem contraditórias, não se anulam. Ainda que seja uma das melhores leis voltada para o enfrentamento da violência, sua efetividade encontra-se ameaçada pela falta de investimento em políticas públicas que possam subsidiar melhores condições de trabalho para os profissionais da segurança pública, da saúde, da educação e da assistência psicossocial.

Mas o dia 7 de agosto simboliza para aquelas/es que atuam no enfrentamento da violência contra mulheres e meninas o momento em que o Estado brasileiro assumiu um compromisso em reconhecer que aquela violência silenciosa que acontece no interior das casas e na intimidade dos relacionamentos vitimiza as mulheres e que não é mais possível negar a elas o acesso à justiça e se torna necessário dar visibilidade a essa forma de violação dos Direitos Humanos.

Além de realizar alterações penais, processuais e tipificar serviços e mecanismos para enfrentar a violência e prestar assistência às mulheres, a Lei Maria da Penha formaliza um importante passo no enfrentamento da violência que é o trabalho preventivo, que visa a longo prazo transformar essa cultura de violência e discriminação contra mulheres.

A princípio, pode parecer romântico defender que uma lei de apenas 14 anos altere uma realidade histórica de discriminação contra as mulheres. E de fato, é ingenuidade pensar que apenas a letra da lei e políticas públicas possam alterar essa realidade, embora tais avanços sejam cruciais para essa tarefa.

Transformações culturais levam tempo para gerar resultados duradouros, os primeiros sinais surgem no interior da sociedade com a pressão de organizações, movimentos e grupos identitários, como foi o caso de Maria da Penha que lutou 19 anos e 6 meses para ser ouvida e recebeu apoio dos movimentos de mulheres da época. Na sequência, transformações institucionais acontecem, na intenção de que o Estado assuma seu dever de proteger os indivíduos. Entre os direitos e deveres que se estabelecem, certamente o mais difícil é sensibilizar a população sobre o seu dever de mudar práticas e comportamentos que fazem parte de uma cultura que desrespeita as mulheres e fortalece as desigualdades.

No trabalho desenvolvido pelo Projeto de Extensão Núcleo Maria da Penha (Numape) da Universidade Estadual do Oeste do Paraná campus Toledo, o principal desafio é realizar a sensibilização da comunidade para que possamos nos entender como participantes dessa sociedade que violenta e mata mulheres todos os dias. O Núcleo Maria da Penha atua há dois anos na Comarca de Toledo realizando palestras, oficinas, capacitações, campanhas de prevenção além de oferecer atendimento gratuito com advogada e assistente social para mulheres em situação de violência. Com base nas resoluções da Lei Maria da Penha, o Numape Toledo trabalha para efetivar a prevenção e o enfrentamento da violência contra a mulher por meio do trabalho intersetorial, mantendo-se articulado às políticas públicas ofertadas na Comarca de Toledo.

Neste ano, a equipe do Numape Toledo dedica o dia 7 de agosto para chamar a atenção para as situações de violência contra mulheres e meninas que acontecem durante o período da pandemia causada pela Covid-19. Nesse momento em que o convívio familiar no interior dos domicílios recebe mais atenção, visto que o isolamento e distanciamento social é uma forma de prevenir o contágio pelo o novo Coronavírus, é importante que estejamos atentos para o acirramento de conflitos e tensões que geram agressões psicológicas, verbais e físicas.

Em todo o mundo, organizações governamentais e não governamentais alertam para o aumento da violência doméstica e intrafamiliar. Conforme a pandemia perdura, aumentam os relatos de mulheres que se encontram em situação de cárcere privado, que no interior de suas casas são impedidas de se alimentar e de realizar sua higiene pessoal como forma de tortura por parte de seus parceiros. Há meninas e meninos expostos às violências sexuais das mais sutis às mais graves. Até mesmo entre aquelas famílias que se creem livres de violências e abusos, as atuais circunstâncias colocam as mulheres em condições de esgotamento físico e mental devido à sobrecarga do trabalho doméstico e cuidado dos filhos, dos idosos, doentes ou pessoas com deficiência.

Neste contexto incerto, é importante reforçar que os serviços de atendimento à mulher em situação de violência são atividades essenciais que seguem atendendo normalmente no período da pandemia. Para aquelas mulheres que são grupo de risco de contágio, ou que estão em situação de grave ameaça e não se sentem seguras em denunciar, existem mecanismos de denúncia como é o caso do Disque 180 – Central de Atendimento à Mulher que recebe denúncias e encaminha para as delegacias locais. Há também o aplicativo para celulares Direitos Humanos Brasil, lançado pelo Governo Federal em abril deste ano. Em junho, a Polícia Civil do Paraná disponibilizou o serviço de Boletim de Ocorrência online para situações de violência doméstica e familiar contra as mulheres.

Além destes meios de denúncia, é importante mantermos nossos olhos e ouvidos atentos ao que se passam em nossa rua. Não devemos nos sentir constrangidas/os em oferecer ajuda a uma mulher que está convivendo com seu agressor. Também é importante saber que a violência praticada no interior de relações afetivas tem uma dinâmica cíclica, na qual os conflitos evoluem para violências mais graves que tendem a ser amenizadas por momentos de arrependimento e conciliação, essa paz aparente dura até o próximo desequilíbrio e as agressões retomam com mais intensidade.

Não deixe que aquele relacionamento abusivo que você conhece ou vivencia vire uma manchete de jornal. Denuncie, peça ajuda, procure apoio, não se cale. Que neste 7 de agosto, lembremos da história de sobrevivência de Maria da Penha e nos posicionemos contra essa cultura de violência contra as mulheres e meninas. Viver livre da violência é um direito, denunciar a violência que observamos no cotidiano é um dever.

Disque 180 para denunciar.

Em caso de emergência, disque 190.

Camila Alves é Cientista Social – Núcleo Maria da Penha (Numape Unioeste Toledo)

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