Treinadores de futebol se tornam produto de exportação de Portugal para o mundo
Além disso, destacam-se como vencedores de torneios continentais, a exemplo de Abel Ferreira, bicampeão da Libertadores com o Palmeiras, e de Leonardo Jardim, que conquistou a Liga dos Campeões asiática, em novembro, à frente do time saudita Al-Hilal.
Enquanto a maioria dos clubes brasileiros permaneceu fechada, apostando em jogadores convertidos em treinadores, os portugueses incrementaram o intercâmbio com outras praças do futebol mundial. Essa troca de experiência resultou no desenvolvimento de metodologias que abrangem a formação integral do técnico de futebol. Os organizadores de cursos partem do princípio de que é preciso incorporar o melhor dos dois mundos, de dentro e de fora do campo, na preparação do treinador, visando a potencializar o seu desempenho profissional.
Com isso, se nas décadas de 1990 e 2000 técnicos brasileiros eram requisitados por clubes lusitanos – Luiz Felipe Scolari, por exemplo, dirigiu a seleção portuguesa de 2003 a 2008 e torcedores, profissionais e imprensa são unânimes sobre sua importância para o futebol do país -, essa relação inverteu-se nas últimas temporadas. Agora são os portugueses quem dão as cartas.
De certa forma, Jorge Jesus abriu o caminho aos conterrâneos pelo sucesso que fez no Flamengo, clube que este ano investiu em mais um treinador português, Paulo Sousa.
Esbanjando apurado espírito profissional e inovação técnico-tática, os portugueses tornaram-se objeto de desejo dos dirigentes brasileiros. Cada vez mais exigentes, colocam em dúvida o perfil do técnico boleiro e veem na contratação no estrangeiro a solução.
FORMAÇÃO INTEGRAL – Nas últimas décadas, Portugal parece ter encontrado uma nova maneira de sinalizar sua presença no mundo. Aproveitando-se da atual onda de globalização que facilita o livre trânsito de mercadorias, mas que também promove o intercâmbio de profissionais, o país já não é mais conhecido somente pela qualidade dos vinhos e azeites que podem ser encontrados à venda nas adegas e supermercados das principais cidades mundo afora. Agora esses produtos tradicionais dividem a vitrine com os técnicos formados além-mar.
Mas, para alcançar o estrelato e ser disputado por grandes clubes com propostas milionárias, o futuro técnico de futebol precisa possuir qualificações que somente anos de estudos permitem adquirir. É longa a caminhada para cumprir os quatro níveis de formação que o habilitam a exercer plenamente a profissão.
A preparação pode chegar a oito anos, além de o candidato ter de empenhar muito dinheiro. “O investimento direto até o treinador tirar a certificação nível Uefa Pro, o último da formação, ronda os 9 mil euros”, projeta ao Estadão Hugo Vieira, 44 anos, diretor executivo de Formação do Braga.
Em Portugal, o acesso à carreira obedece a um processo bastante exigente. O conceito com o qual os responsáveis pela formação de novos técnicos trabalham envolve a preparação integral do profissional. Possuir qualificação técnico-tática é o ponto de partida, mas é preciso ir além de questões relacionadas ao relvado. “Procuramos desenvolver em nossos treinadores, sobretudo naqueles que atuam nas categorias de base, a visão segundo a qual os ‘miúdos’ precisam ser preparados como atletas e como homens”, declara Vieira.
O técnico “boleiro” é página virada nos clubes portugueses. Além de aulas de conhecimentos específicos, o programa dos cursos de formação inclui conteúdos relacionados à Psicologia Aplicada, Fisiologia, gestão e organização do futebol, entre outros. De acordo com Ricardo Martins, 47 anos, diretor técnico da Associação de Futebol de Braga (AFB), para lecionar na entidade o primeiro pré-requisito é possuir especialização. Por isso, é comum encontrar mestres e doutores de diferentes áreas, cujo objeto de pesquisa relaciona-se com o futebol, lecionando para os futuros técnicos.
Em Portugal, o acesso à carreira obedece a um processo bastante exigente. O conceito com o qual os responsáveis pela formação de novos técnicos trabalham envolve a preparação integral do profissional. Possuir qualificação técnico-tática é o ponto de partida, mas é preciso ir além de questões relacionadas ao relvado. “Procuramos desenvolver em nossos treinadores, sobretudo naqueles que atuam nas categorias de base, a visão segundo a qual os ‘miúdos’ precisam ser preparados como atletas e como homens”, declara Vieira.
QUATRO ESTÁGIOS – Os cursos de formação de treinadores são realizados de acordo com diretrizes definidas pelo Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ), em articulação com a Federação Portuguesa de Futebol (FPF). A formação está dividida em quatro estágios correspondentes ao limite do exercício profissional. Os níveis I (Uefa C) e II (Uefa B) são promovidos pelas 22 associações de futebol regionais e habilitam o profissional a trabalhar nas categorias de base e divisões inferiores dos clubes de Portugal.
Para obter a licença da Uefa que permite trabalhar na Primeira Liga e no mercado europeu, o técnico deve possuir os certificados dos níveis III (Uefa A) e IV (Uefa Pro), o mais alto. Ao contrário da formação promovida pelas associações, que abrem várias turmas por ano, os dois últimos níveis de formação de treinador somente podem ser ministrados pela Federação Portuguesa, conforme calendário definido pela Uefa a cada dois anos.
Martins define o treinador português como um estrategista, atributo que o diferencia dos demais. “Nossos atletas não se impõem pela estatura física. Por isso, para competir no mercado europeu com jogadores mais fortes de França e Alemanha, por exemplo, nossos treinadores apostam na habilidade individual dos jogadores e na maneira como devem jogar a depender das características do adversário.”
A realidade socioeconômica e cultural do país obriga o treinador português a aprender a trabalhar em condições de adversidade. A bola é o componente principal da metodologia de formação. “Se há a necessidade de desenvolver no jogador o aspecto força, serão elaborados exercícios específicos, mas sempre tendo a bola como instrumento central”, explica Martins.
Mas nada é garantido de antemão. Estudar representa apenas um dos atributos da formação. “Naturalmente que o curso por si só não confere competência a nenhum treinador, mas lhe dá ferramentas e conhecimentos que, quando bem aproveitados e aliados à paixão que é necessária para esta profissão, ao conhecimento da modalidade, à aptidão natural para o treino e o ensino, e à capacidade de liderança, ajudam muito na construção de um profissional de sucesso”, pondera Marco Guerreiro, 40 anos, diretor técnico da Associação de Futebol de Lisboa.
MUDANÇA ESTRUTURAL – Vários fatores influenciaram a recente transformação do futebol português, da qual faz parte a rigorosa preparação de treinadores. Um deles é o aprofundamento da integração da União Europeia com a entrada em vigor, em 2009, do Tratado de Lisboa. Esse documento reformula o funcionamento do bloco dando mais autonomia ao Parlamento Europeu para expedir regras comuns a todos os Estados-membros.
As políticas esportivas adotadas desde então, que incluem o apoio e financiamento de projetos por fundos europeus, miram objetivos formulados em conformidade com os ideais e valores fundacionais da União. No âmbito profissional, o foco volta-se para coibir a corrupção e lavagem de dinheiro, que contribuem para degradar a imagem das instituições esportivas. Da mesma forma, passou-se a reforçar a dimensão econômica e a incentivar a livre circulação de profissionais, além de promover o desenvolvimento de recursos humanos ligados ao esporte em geral.
Orlando Carvalho, 59 anos, conselheiro da Liga Portugal e perito na Comissão Arbitral da Federação Portuguesa de Futebol, que representou o país em um grupo de trabalho da Comissão Europeia entre 2008 e 2010, analisa a importância das transformações desde então. “Os clubes agora são submetidos a rotinas de compliance e accountability, visando a uma governança sustentável do esporte. Sem isso a lei da selva se instala no futebol.”
Outro componente importante do processo de evolução do futebol português foi a mudança na legislação da Sociedade Anônima do Desporto (SAD), a correspondente da SAF no Brasil, em 2013. Para Carvalho, “a SAD proporcionou maior profissionalização no futebol, bem como em outras modalidades esportivas”.
Para o dirigente português, atletas e treinadores são faces de uma mesma moeda. “São ativos que o clube deve administrar com o maior zelo possível. Temos de oferecer as condições ideais de trabalho pensando em projetos de longo prazo”, diz António Carvalho, 51 anos, presidente do Braga.
CELEIRO – A busca por qualificação de excelência se explica primeiro pela vantagem que o clube pode ter sobre os adversários, mas os dirigentes estão de olho também em outro fator. “Estamos atentos para as oportunidades que estão surgindo para o treinador quando ele passa a ocupar o cargo de gestor de futebol. Como poucos, esse profissional possui a vantagem de dominar conhecimentos sobre os recursos técnicos, humanos e administrativos do clube”, revela Carvalho, orgulhoso por dirigir o clube português tido como o que mais exporta treinadores.
Antes de fazer sucesso internacional, Jesualdo Ferreira, Jorge Jesus, Leonardo Jardim, Sérgio Conceição, Abel Ferreira e Rúben Amorim passaram pelo Braga. “Se Portugal virou polo exportador de treinadores, Braga é o seu celeiro”, celebra António Carvalho.
Seu entusiasmo tem fundamento. Em 2020, o clube protagonizou a terceira contratação de treinadores mais cara do mundo. O Braga recebeu 10 milhões de euros de cláusula rescisória para liberar Rúben Amorim para o Sporting Lisboa.
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