Especialista destaca aspectos positivos da reforma tributária

Há mais ou menos 30 anos o Congresso Nacional debate a questão da reforma tributária. Finalmente a proposta avançou e foi votada na Câmara Federal. Na última segunda-feira, de acordo com informações da Agência Senado, o primeiro projeto de regulamentação da reforma tributária, PLP 68/2024, chegou ao Senado, em regime de urgência. Os prazos de tramitação, com essa urgência solicitada pelo presidente da República, de 45 dias, começam a contar a partir do momento em que o projeto for lido no Plenário, o que deve ocorrer em agosto.

Para explicar um pouco mais sobre os principais pontos da reforma, o editor-chefe do JORNAL DO OESTE, o jornalista Márcio Pimentel, entrevistou o advogado e consultor tributário, sócio do Giollo, Abegg, Rotta, Macorim e Feil Advogados e sócio Diretor Executivo da R-Torn Inteligência Tributária, Dr. Gustavo B. Becker Feil. Ele é especialista em Direito Tributário pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas – FGV Direito SP, membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário IBDT, vice-presidente da Comissão de Direito Tributário da OAB/PR, Subseção Toledo.

Na avaliação do especialista a atual reforma tributária é mais ou menos o que aconteceu com a reforma da Previdência. Houve alguns grupos que foram beneficiados, outros que foram prejudicados e alguns grupos que não vai mudar nada.

JORNAL DO OESTE – Antes de entrar nas questões especificamente técnicas da reforma. Essa é uma reforma que demorou por ser muito técnica ou por ser muito política?

Gustavo Feil – A principal barreira é política. A reforma tira a autonomia dos estados e municípios para legislar e dispor sobre ICMS e ISS. Portanto, a principal resistência vem de governadores e prefeitos. Por quê? Porque eles vão perder a autonomia para conceder descontos especiais e estabelecer tributação diferenciada para certos itens ou setores. Por exemplo, a economia do Paraná é diferente da economia da Bahia. A reforma, de certa forma, vai acabar com práticas que vimos na disputa entre estados para atrair, por exemplo, as indústrias automobilísticas, onde um estado oferecia maiores descontos de ICMS para atrair investimentos, a chamada guerra fiscal.

JO – E isso tende acabar?

Gustavo Feil – Na teoria, sim. Até então, os estados abriam mão de arrecadação concedendo benefícios fiscais para setores. Isso acabava por reduzir a receita dos estados, pois um competia com o outro, concedendo cada vez mais benefícios. Essa competição resultava na diminuição da arrecadação e tinha um efeito prejudicial nas contas dos governos estaduais.

JO – E isso tende a ser reduzido com a reforma, por quê?

Gustavo Feil – Porque os governadores e prefeitos não terão mais essa autonomia para dar o benefício a um setor só. Ele vai poder ter uma alíquota menor do que outro estado, mas ele vai ter que pensar muito bem porque essa alíquota vai valer pra todos os itens. Então ele não pode fixar uma alíquota menor para um item específico. Se reduzir a alíquota, isso vai valer pra todas todos os itens então o impacto disso é muito grande e terá de ser muito bem calculado.

JO – Dr Gustavo, esse imposto único não é uma novidade. Vários países do mundo adotam esse tipo de imposto. Mas houve muita polêmica ou muita reclamação justamente por essa perda de arrecadação. Neste sentido a reforma é tecnicamente boa em relação aquilo que nós tínhamos?

Gustavo Feil – Quando se fala de regime tributário no Brasil, é um absurdo, é um emaranhado total. A reforma foi aquela tecnicamente possível. Temos que partir do cenário atual. É lógico que a reforma sempre poderia ter pontos melhores e poderia ter sido mais debatida. Ela foi votada com certa pressa e não passou por comissões dentro da Câmara Federal. Mas qual é o cenário atual? É muito ruim. É extremamente complexo lidar com a tributação, principalmente do ICMS, no Brasil.

JO – Por exemplo?

Gustavo Feil – Cada estado e o Distrito Federal têm autonomia para fazer suas próprias regras, definir alíquotas específicas para cada item, criar regimes especiais, conceder renúncias, definir itens sujeitos a substituição tributária e outras exceções. O ICMS é muito complicado e o PIS/COFINS, embora sejam tributos federais, com um regime único nacional, também são muito complexos. Hoje, além das empresas pagarem muitos impostos, elas precisam contratar um grande departamento fiscal, com profissionais altamente qualificados, para evitar problemas ou declarações erradas, que podem gerar multas, passivos e discussões. As empresas precisam contratar advogados e consultores e ficar atentas ao que está sendo discutido no Supremo Tribunal Federal. Por exemplo, se uma empresa fica inerte enquanto seu concorrente toma uma decisão acertada ou ajuiza uma discussão tributária, isso pode refletir no preço do produto, tornando-o mais barato e com melhor margem.

JO: Isso gera uma batalha tributária? É isso?

Gustavo Feil: Exatamente. No cenário econômico, isso é muito ruim para a melhoria para o país porque não estamos falando de que a empresa que vai vencer a batalha pelo consumidor é aquela mais eficiente, com o melhor produto, mas sim de quem tem a melhor assessoria tributária. Isso é prejudicial do ponto de vista de política de crescimento da produtividade do país.

JO – E qual o prazo para esta reforma entrar em vigor? Ela será escalonada ou passará a valer de uma vez?

Gustavo Feil – São dois os principais tributos. O PIS/COFINS vai virar a CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços); ICMS e ISS serão unificados no IBS (Imposto Sobre Bens e Serviços). A CBS entra em vigor em 2027. Em 2026, faremos um teste para verificar se a alíquota de 26,5% prevista será suficiente para cobrir a despesa pública. Mas em 2027, já teremos a CBS plena. A transição do ICMS e ISS para o IBS começa gradativamente e será concluída até 2033.

JO – E quais são os principais objetivos dessa reforma? É a redução da carga tributária?

Gustavo Feil – Não! É preciso deixar claro: a reforma não tem a pretensão de reduzir a carga tributária. Atualmente, o estado não comporta uma redução da carga tributária. A reforma não foi discutida com esse objetivo. O principal ponto da reforma é a simplificação do sistema, reduzindo a complexidade. Além de todo o custo de manutenção de um departamento fiscal, a complexidade gera ineficiência e facilita fraudes. É muito difícil controlar um sistema complexo. O principal objetivo da reforma é reduzir esse chamado custo de conformidade.

JO – Na prática, as classes mais baixas continuarão sofrendo…

Gustavo Feil – O sistema tem que ser mais simples. E há outras discussões que surgem. Sempre ouvimos que o pobre paga mais impostos. Por quê? Porque uma pessoa que ganha um salário mínimo gasta todo o seu rendimento em consumo: paga contas de luz, água, vai ao mercado, abastece o carro. O rico gasta mais, mas proporcionalmente poupa. Por isso, a ideia de implantar o cashback.

JO – E como isso vai funcionar na prática?

Gustavo Feil -Algumas ferramentas estão sendo discutidas para devolver parte do imposto pago pelos mais pobres. Ainda não temos a tecnologia necessária, como cadastros detalhados e controle eficiente. Uma ideia seria usar cadastros existentes em programas paralelos, como o Nota Paraná. Quando a pessoa fizer uma compra, informaria o CPF. A informação seria processada pelo governo, que cruzaria os dados, devolvendo o imposto pago por itens específicos. Mas essa tecnologia ainda não existe.

JO: Esse cashback vai funcionar para todos os itens consumidos?

Gustavo Feil: Não. A ideia é que seja para itens essenciais, como alimentação e medicamentos. Muitos itens da cesta básica já são beneficiados com alíquota zero.

JO -Quais outros instrumentos a reforma trouxe para facilitar a compreensão tributária no Brasil?

Gustavo Feil A reforma também visa combater a erosão da base tributária, a sonegação e a prática do devedor contumaz. Um exemplo é a retenção do tributo no momento da liquidação de títulos financeiros nos bancos, o split payment. Hoje, o valor é recebido integralmente e o imposto é recolhido posteriormente, o que permite atrasos no pagamento do tributo. Com a retenção na fonte, o próprio banco recolhe o tributo, eliminando a possibilidade de inadimplência.

JO – Como funciona hoje?

Gustavo Feil – Hoje, se eu recebo um título de mil reais, recebo esse valor no meu caixa e faço o recolhimento do imposto no mês seguinte. Isso permite que, se eu quiser, posso atrasar esse repasse por anos. Com a retenção na fonte, essa possibilidade desaparece, acabando com cenários onde grupos acumulam bilhões em dívidas tributárias.

JO – Outro ponto que causou discussão foi a questão da agroindústria. Como fica a distribuição de arrecadação entre municípios produtores e consumidores?

Gustavo Feil – A reforma destina a arrecadação para o local onde o bem foi consumido, seguindo o padrão internacional. É natural que Municípios com maior população, que demandam mais recursos públicos, sejam os destinatários da maior parte da arrecadação. Ainda não está totalmente claro como será a distribuição da receita e a atuação do Comitê Gestor do IBS nessa questão e esse foi um dos pontos centrais que atrasaram a reforma, justamente porque trata da divisão do dinheiro. De modo geral, o impacto da reforma na agroindústria será significativo no início da cadeia. O produtor rural, que hoje paga basicamente somente imposto de renda, passará a pagar imposto na saída da produção, caso o faturamento anual ultrapasse R$ 3,6 milhões. Ele poderá fazer créditos de insumos, como sementes e óleo diesel, mas terá que se adaptar à nova realidade contábil.

JO – Então o produtor vai ter que se transformar numa empresa agrícola?

Gustavo Feil – No mínimo, ele terá que passar a ter uma contabilidade de médio porte, diferente da atual. Será necessário profissionalizar o setor e os escritórios de contabilidade precisarão se adaptar. Isso repercutirá no preço dos produtos da agroindústria. A partir de 2026, veremos como isso se desenrola em termos de preços e custos, pois parte da agroindústria atualmente tem uma carga tributária negativa, é credora de tributos. Com a reforma, em alguns setores, como os da cesta básica, esses créditos aumentarão significativamente e poderão ser devolvidos em dinheiro, já em outros a carga tributária irá aumentar.

JO – A reforma trouxe benefícios?

Gustavo Feil – Um ponto positivo na votação do PL foi a inclusão de um teto de 26,5% para a alíquota máxima, evitando aumentos indiscriminados. Se for necessário revisar esse valor, será preciso aprovar outro projeto complementar.

JO – A tendência é reduzir a sonegação de impostos?

Gustavo Feil – Sim. Esse é outro grande objetivo da reforma. O sistema atual tem falhas e brechas que permitem a sonegação. Simplificando o sistema e reduzindo exceções, facilitamos a apuração e a fiscalização, tornando mais fácil identificar irregularidades. Hoje, isso é complicado devido aos arranjos estaduais e benefícios fiscais específicos. A reforma representa um avanço importante para reduzir a sonegação.

JO – E quais seriam os principais desafios para que essa reforma traga algum benefício ao cidadão que está aqui na ponta?

Gustavo Feil – Eu não tenho dúvida que será benéfica. O sistema hoje é muito ruim. Mesmo eu, que estou nessa posição, não sei responder algumas questões. Então imagina você entender o que está pagando lá na ‘boca do caixa’. Então isso tende a ser melhorado, a ser mais eficiente, a tornar o sistema mais simples. Não que ela seja perfeita, mas a gente sai de um sistema extremamente ruim e complicado para um sistema que tem seus defeitos, mas que tem tudo para rodar e dar certo. Foi o que deu para ser feito. E essa não é a reforma final. Estamos falando sobre a reforma da tributação sobre o consumo, que é responsável pela maior parte do problema. Mas nós temos problemas sobre a tributação do trabalho e do emprego. Temos problemas em tributação de renda, internacional. Mas a reforma tributária mexe num ponto importante.

Márcio Pimentel

Da Redação

TOLEDO

Mais alguns detalhes da reforma

Menos tributos

O projeto estipula com mais detalhes quais produtos ou serviços terão uma cobrança menor dos novos tributos ou que sequer serão taxados — chamados de regimes diferenciados. Ao todo, são mais de 700 hipóteses de isenção, imunidade, redução e benefícios fiscais. 

Teto

A regulamentação prevê que se a soma das alíquotas estimadas de CBS e IBS forem maiores que 26,5% em 2033 — ano em que os novos tributos estarão totalmente implementados — o Poder Executivo deverá enviar projeto de lei ao Congresso Nacional propondo sua diminuição.

Créditos

O projeto prevê aos contribuintes que participam da cadeia de produção o direito de recuperar parte dos novos tributos pagos (salvo o Imposto Seletivo), desde que haja a comprovação da operação com documento fiscal eletrônico. 

Isso ocorrerá por meio de um sistema de crédito em que o fornecedor abate, dos tributos devidos no momento da venda, o tributo que o produtor já pagou quando vendeu o insumo a ele. O sistema será desenvolvido pelo comitê gestor do IBS e deverá permitir aos contribuintes a consulta dos pagamentos já realizados.

Formas de utilizar

Os créditos poderão ser usados para pagar os tributos devidos na operação. Mas, isso só ocorrerá se não houver saldo devedor de IBS ou CBS ainda não inscritos em dívida ativa. Nesse caso, a prioridade na utilização dos créditos será na compensação do saldo devedor.

Se houver crédito e o contribuinte não se encontrar em nenhuma dessas duas situações, poderá solicitar ressarcimento ou utilizar os créditos para quitar futuras cobranças dos tributos. Após cinco anos sem uso, extingue-se o direito.

Vedações

Os créditos não poderão ser transferidos, exceto em alguns casos, como fusão de empresas. Também não será possível utilizar o crédito relativo à CBS para arcar com a cobrança do IBS, nem o oposto será permitido.

Não haverá crédito para operações comerciais consideradas de consumo pessoal nem para os seguintes itens

Restrições

Quando o contribuinte não precisar arcar com CBS ou IBS, haverá restrições quanto ao uso dos créditos. As normas são diferentes para cada tipo de benefício:

Imunidade e isenção: não poderá utilizar os créditos das operações anteriores nem posteriores;

Alíquota zero: poderá utilizar crédito apenas das operações anteriores;

Suspensão de cobrança: creditamento será admitido somente no momento do efetivo pagamento.

IVA

O direito ao crédito só é possível porque a CBS e o IBS são tributos sobre valor agregado (IVA), que observam o princípio da não cumulatividade. Isso resulta em uma arrecadação do governo que coincide com a alíquota aplicada ao preço pago pelo consumidor final. Sem esse mecanismo, um mesmo tributo é aplicado várias vezes durante toda a circulação de um bem, “em cascata”, como ocorre hoje com vários tributos.

Cashback

Outra forma de devolução de tributos ocorrerá para as famílias com renda de até meio salário mínimo por membro — o que corresponde a R$ 706 por integrante, atualmente. O chamado cashback devolverá no mínimo 20% de IBS e CBS para qualquer gasto dessas famílias. A devolução será em até 25 dias da apuração. 

A exceção ocorre na compra de botijão de gás de 13 quilos e em serviços de energia elétrica, água, esgoto e gás natural, com relação à CBS. Nessas situações, a devolução será de todo o valor que a família pagar de tributo federal. 

Os produtos taxados com o Imposto Seletivo, que incide sobre itens prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, não terão cashback.

As porcentagens podem aumentar por meio de nova lei da União (no caso da CBS) ou dos estados e municípios (para o IBS).

Sustentabilidade

Elaborado para preservar o meio ambiente e a saúde da população, o Imposto Seletivo possui regras próprias para cada categoria taxada. Ele poderá ser cobrado a partir de 2027.

Com relação aos veículos, por exemplo, as alíquotas serão maiores ou menores em relação a cada tipo de automóvel, conforme critérios de sustentabilidade, de desenvolvimento nacional e de inclusão social.

Não serão taxados os caminhões e haverá alíquota zero para os automóveis adquiridos por pessoas com deficiência ou taxistas. 

As alíquotas do Imposto Seletivo, que serão cobradas apenas uma vez no processo produtivo, serão estabelecidas em futura lei federal para todos os casos.

Cigarros e álcool

Os fumígenos também terão Imposto Seletivo, que será agravado para os cigarros e charutos que contenham tabaco. Nesses casos, a alíquota será acrescida de um valor extra, que deve variar de acordo com as características do produto. O mesmo valerá para as bebidas alcoólicas.

Bens minerais

Já o Imposto Seletivo para minério de ferro, petróleo, gás natural e carvão mineral terá o percentual máximo de 0,25%. Há exceções, como o uso do gás natural em processo industrial, que permitem o imposto zerado.

Outros tratamentos vantajosos

A regulamentação estipula outras situações em que haverá diminuição ou suspensão de CBS e IBS. É o caso dos regimes favorecidos da Zona Franca de Manaus e das áreas de livre comércio na região Norte, que manterão seu diferencial competitivo atual. 

O texto livra indústrias incentivadas dessas regiões, por exemplo, do pagamento de CBS e IBS em casos de importação de bens materiais (suspensão de cobrança). O mesmo vale para bens industrializados em outras partes do país que entrarem nessas áreas para seu processo produtivo.

Fonte: Agência Senado

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