História: reconstruir ou apagar?
Manifestantes demoliram uma estátua de Cristóvão Colombo, em Baltimore (EUA). Considerado o descobridor do continente americano, Colombo foi ao chão em novo episódio da onda de justiça a monumentos de figuras ligadas à escravidão e ao colonialismo.
A História é registrada a partir dos vitoriosos, não dos derrotados. Injustiça. Muitas vezes, os derrotados com o passar do tempo se tornam vencedores. Derrubar estátuas já aconteceu em países do Leste da Europa, depois da queda do Comunismo. Mais recentemente, fundamentalistas islâmicos promoveram a destruição de monumentos e patrimônios arquitetônicos da humanidade.
Platão teve escravos. Aristóteles acreditava que a escravidão era algo natural e necessário. Naquele tempo acontecia assim na Grécia, berço da civilização Ocidental. O escritor brasileiro Monteiro Lobato, com razão acusado de racista — cuja defesa da eugenia está clara em seu livro “O choque das raças”, pode ser relevado se tomada por base a época em que escreveu o “Sítio do Picapau Amarelo”. Naquele tempo cabia uma “Tia Anastácia”, cozinheira negra, personagem folclórica. Queime-se a obra de Monteiro Lobato ou, então, que sirva para ensinar às crianças como era a vida antes delas, os porquês dos erros cometidos.
Por diferentes razões, uns tentam reconstruir a História e outros tentam apagá-la. Não se muda o passado. Mas, com os ensinamentos dele, o presente e o futuro podem ser melhores. O que aconteceu deve ser lembrado para evitar novos erros. Sejam quais forem as razões ideológicas, não devemos ser complacentes com nenhuma forma de racismo, preconceito, discriminação, violência. Por outro lado, vale a reflexão: História é História, feia ou bonita.
Cristóvão Colombo tem estátuas nos EUA como descobridor da América, e não por ter sido usuário de escravos. A escravidão é absurdo que não se justifica, porque Canadá, Austrália e Nova Zelândia também foram colonizados por ingleses sem o emprego de escravos. Na Nova Zelândia, por exemplo, os colonizadores britânicos se entenderam com os nativos Maoris na construção do país. Civilizado? Pois é. Em que esses mesmos colonizadores trabalhavam? Caçavam baleias e focas, o que à época não era visto como crime ambiental. Nem por isso, as estátuas deles estão sendo derrubadas pelos defensores dos animais. Seguem de pé pelos feitos históricos, não pelo desrespeito ao meio ambiente.
Pedro Álvares Cabral invadiu o Brasil em 1500, causando a morte de milhões de índios. Há estátuas, avenidas, escolas com o nome dele por ter sido o descobridor do Brasil. Cabral foi o responsável por um sistema predatório e extrativista, corrupto, que gerou as raízes do que sofremos hoje. Empregando mão de obra escrava, uma indignidade, Cabral também foi conivente com essa prática da época. Em nossas ruas e praças pelas cidades do País, além de estátuas de Cabral, há da redentora Princesa Isabel, do revolucionário Zumbi dos Palmares e de valentes índios, além de outras personagens históricas. Quem deve ficar, quem deve cair?
O português Pedro Fernandes Sardinha diplomou-se em Teologia pela Universidade de Paris (FRA), lecionou nas Universidades de Coimbra (POR) e Salamanca (ESP). Designado primeiro bispo do Brasil, chegou a Salvador (BA) em 1551. Cinco anos depois foi chamado à corte. O navio afunda junto à foz do rio Coruripe, a poucas léguas do rio São Francisco. Os passageiros são capturados pelos índios Caetés que, no arroio de São Miguel das Almas, os matam e comem. Atualmente, a estátua de Dom Sardinha está na Praça da Sé, próxima ao Pelourinho, em Salvador. Muito pouca gente sabe quem foi o homenageado, se importante ou não. Mas, todos sabem que os índios o devoraram.
Caso formos levar em conta essa nova onda de justiça, embora fundamentada no soberano respeito ao próximo, teremos que apagar boa parte da História Universal. Derrubar não apenas estátuas e monumentos, como esvaziar acervos de museus e mudar os nomes de avenidas e praças aqui e em todo o Mundo. Ou deixar a História registrar os fatos de cada época, para com liberdade e sabedoria promover mudanças. O que importa é contar a verdade, não permitir que se perca ao longo do tempo para que os erros do passado não voltem a acontecer.
*Ricardo Viveiros, jornalista e escritor, doutor em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, é membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP) e Membro Honorário da Academia Paulista de Educação (APE). Autor, entre outros, dos livros: “A vila que descobriu o Brasil” (Geração), “Justiça seja feita” (Sesi), “Educação S/A” (Pearson).