Lei Maria da Penha: 14 anos de existência e resistência
A Lei Maria da Penha – Lei n.º 11.340, sancionada em 7 de agosto de 2006 – acaba de completar 14 anos. Eis uma boa ocasião para refletirmos sobre o “estado da arte” do enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher.
É importante registrar que a Lei, verdadeiro marco positivo na luta de movimentos feministas pela igualdade de gênero no Brasil, representou inestimável progresso em matéria de proteção aos direitos das mulheres, mobilizando inúmeras boas políticas públicas e normas para garantir às mulheres maior e melhor acesso ao Sistema de Justiça. Igualmente, abriu caminho para a aplicação de outras medidas afirmativas de reconhecimento e representatividade, focadas na correção e no reparo de desigualdades históricas e estruturais de gênero, desenvolvidas principalmente nos campos cultural e educacional.
Aliás, algumas outras medidas preventivas e de transformação cultural foram inseridas, neste ano, na Lei Maria da Penha. A Lei 13.984/20 ampliou o rol das medidas protetivas de urgência para abranger “o comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação” e o “acompanhamento psicossocial do agressor, por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio” (art. 22, incisos VI e VII).
Apesar dos notáveis avanços, ainda persiste um estado de coisas de acentuada violência contra as mulheres, que continuam sendo vítimas, em razão do gênero, de feminicídios, lesões corporais, ameaças, violências sexuais, discriminações e assédios no ambiente de trabalho etc. Tais violações se agravam quando somadas a outros fatores de vulnerabilidade, como raça, classe social, orientação sexual e origem.
De acordo com o sistema PROMP, do Ministério Público do Estado do Paraná, apenas em 2019, foram registrados 25.662 inquéritos policiais de violência doméstica e familiar e 138 de feminicídios (entre tentados e consumados), números exorbitantes, a revelar níveis epidêmicos de violência de gênero. Em tempos de Covid-19, essa situação se agravou, com forte ascensão da violência de gênero e maior dificuldade das mulheres para notificar as ocorrências, o que vem sendo relatado, entre outras instituições, pela ONU Mulheres e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
A partir desse pano de fundo, é oportuno este mês de agosto para refletirmos sobre o que é necessário para impedir que outras vidas de mulheres sejam ceifadas ou submetidas a violências inaceitáveis.
E as soluções estão indicadas na própria Lei Maria da Penha, que estabelece, por exemplo, como diretrizes das políticas públicas destinadas a coibir a violência doméstica e familiar, “a promoção de programas educacionais que disseminem valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia” (art. 8º, VIII) e “o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à eqüidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher” (art. 8º, IX).
Tanto o silêncio sobre a ainda acachapante desigualdade de gênero quanto os discursos estereotipados a culpar as mulheres pelos abusos dos quais são vítimas revelam-se posturas ilegais. Do mesmo modo, as propostas legislativas conhecidas como “Escola sem Partido” ou “Lei da Mordaça”, além de antijurídicas, imobilizam o avanço do combate à cultura da violência contra a mulher.
Aliás, o Sistema de Justiça também precisa ser aperfeiçoado para melhor acolher as demandas de gênero e respondê-las de modo eficaz, dando concretude aos comandos da Lei Maria da Penha. De acordo com levantamento feito pelo IBGE em 2018, somente 8,3% dos municípios brasileiros tinham delegacias especializadas de atendimento à mulher, apenas 2,4% contavam com casas-abrigo para mulheres em situação de violência e 12,8% possuíam secretarias exclusivas de políticas para mulheres. Além disso, segundo o último levantamento disponibilizado no “Painel de Monitoramento da Política de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres”, do Conselho Nacional de Justiça, até 2019, existiam 139 Varas Exclusivas de Violência Doméstica e Familiar em todo o Brasil, sendo apenas duas delas no Paraná. Por outro lado, o nosso Estado ficou em quarto lugar no indicador referente aos poderes judiciais que mais receberam processos novos, na primeira instância, no referido ano.
Atualmente, neste cenário de pandemia, é importante salientar que o Conselho Nacional do Ministério Público editou a Nota Técnica nº 01/2020, “recomendando aos membros do Ministério Público brasileiro a adoção de medidas preventivas nos Estados e elaboração de um Plano de Contingência de prevenção e repressão aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher durante a Pandemia do coronavírus”, documento que foi divulgado pelo Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos (CaopDH) do Ministério Público do Paraná, no Informe 03/2020 Covid-19: Violência doméstica durante a pandemia.
Nesse contexto, conforme já comunicado pelo Ofício-Circular nº 343/2020, há agora a possibilidade do registro de Boletins de Ocorrência (BO) on-line dos casos de violência doméstica e familiar (com exceção dos casos de violência sexual), o que foi alcançado em razão de articulação do Núcleo de Promoção da Igualdade de Gênero (Nupige) do CaopDH com a Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Cevid-TJPR), o Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem-DPPR) e a Secretaria de Estado da Segurança Pública, por meio da Polícia Civil da Paraná, pela sua Delegacia-Geral.
Por fim, vale noticiar que a promoção da igualdade de gênero com a prevenção, a apuração e o monitoramento dos casos de violência contra a mulher, especialmente dos feminicídios, consta como diretriz prioritária do planejamento estratégico do Ministério Público do Paraná, a ser observada e implementada pela atuação de cada um de seus integrantes, com responsabilidade jurídica e ética no pleno cumprimento das normas de transformação social contidas na Lei Maria da Penha.
* Procurador de Justiça e coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos (CaopDH) do Ministério Público do Paraná.
** Promotora de Justiça e coordenadora do Núcleo de Promoção da Igualdade de Gênero do CaopDH.
*** Promotor de Justiça do CaopDH.
**** Assessora Jurídica do CaopDH.