Lula III sem marca
Gaudêncio Torquato
As imagens dos Governos são extensões da identidade dos governantes e retratam a cara de seu tempo. O trabalhismo marcou a era de Getúlio Vargas. O desenvolvimentismo tinha as feições sorridentes de JK. O janguismo assumia os contornos do esquerdismo oportunista de João Goulart. O janismo, por sua vez, juntava regrismo autoritário com independência, a marca de Jânio Quadros. O ciclo dos militares fechou o universo da locução, maltratou a cidadania e abriu comportas para grandes projetos.
Um populismo tateante, de altos e baixos, acabou ofuscando a liturgia do governo Sarney. A procura de uma moeda forte fragmentou sua imagem. O governo Collor foi um estrondo, marcado por sustos, marketing pessoal, abertura da economia e escândalos. A propina correu solta. E a cara do atual governo? Tem marca? Infelizmente, não. Assume feições franksteinianas. Mistura de economia claudicante, um gigantesco balcão de trocas, faceta social, porém sem a nitidez dos governos Lula I e Lula II, incoerência na área da sustentabilidade ambiental, uma no cravo, outra na ferradura.
O Brasil de Lula III é dominado por uma névoa que obscurece a índole do governo. O poder é dado a grupos do centrão e a alas do PT, que lutam para resgatar seus velhos domínios. A administração burocrática se espalha por 37 ministérios e estruturas que abrigam cerca de 30 mil cargos e funções de confiança. O pragmatismo com foco na governabilidade esmaeceu a antiga imagem de progressismo de esquerda, ilustrado pela estrela do PT nas bandeiras vermelhas.
Os comportamentos se mimetizam, os gostos se unificam e até as artes se repetem na redundância de ritmos musicais pobres, como pode se ver e ouvir na propaganda governamental que exalta tempos de união e reconstrução. A imagem é a de um governo que repete os velhos refrões de outras administrações. Seria o começo do fim do lulopetismo? A presidente do PT, Gleisi Hofmann, luta para que o antigo costume de abrir os cofres volte com força, mesmo que o estouro da boiada implique rompimento do compromisso com responsabilidade fiscal.
Fernando Haddad, o ministro da economia, perderia a luta para conseguir chegar ao déficit zero no PIB? Certamente. As lideranças petistas sopram a mesma tuba: gastemos o que for necessário, o importante é ganharmos as eleições. E assim, o país chega ao final do primeiro ano do governo Lula III. Disposto a botar pra quebrar, mesmo que a boiada estoure as estacas do curral. O poder pelo poder volta a ser a meta da administração nesse início de atividades do fenômeno da IA, Inteligência Artificial, cujo domínio pode ser um trunfo para os governos de amanhã. Ou será que o Lula III já está sob a égide da IA?
Aliás, pergunte-se a essa Senhora qual a receita de um bom governo. Dará a resposta que muitos esperam: obediência ao teto de gastos, melhoria dos serviços públicos, enxugamento de estruturas administrativas, investimentos em infraestrutura, obras sociais de vulto, sem apelos populistas. Em suma, aumento do índice nacional de felicidade líquida. E uma forte ação para eliminar os bolsões de violência que se espraiam pelo território.
Vale ressaltar: o Brasil avançou no caminho da modernização, a partir do Plano Real, das reformas constitucionais de 88 e do programa de privatização. Mas está tateando na economia e sem abertura de portas no programa Bolsa Família.
Luiz Inácio mudou. Não se mostra tão próximo à temperatura social. O velho Lula, com muito tempo no poder, acostumou-se a ver as coisas pelos olhos de bajuladores, políticos fisiológicos e frios burocratas, para quem os números prevalecem sobre as pessoas. Mais que inexpugnáveis, perdem o senso da realidade.
Conto, mais uma vez a história do Mané, aquele que está no fundo de um poço, acreditando que, usando inteligência e força, sairá logo de lá. Passa o dia tentando. Obcecado pela ideia de escapar, já não vê mais nada, nem a corda jogada por alguém que por ali passa. Mané está surdo e segue trabalhando. A pessoa grita: “pegue a corda e saia”. Mané responde irritado: ‘não vê que estou trabalhando? Não quero a sua corda”.
Lula parece também padecer da síndrome dos heróis. Considera-se acima do bem e do mal, é um chefe providencial, um gênio da raça, um homem de façanha, sacerdote da liturgia, sempre imerso nos dogmas, nas solenidades. Veja-se Nicolas Maduro, da Venezuela, louco para abocanhar Essequibo, um território que equivale a 2/3 da Guiana. Por quê? Porque lá tem uma imensa reserva de petróleo e gás. Considera-se um senhor acima de compromissos internacionais, num plano mais elevado que a Corte Internacional de Haia ou mesmo da ONU. Seria mais adequado colocá-lo na galeria de deuses de pés de barro, para os quais foi feita a parábola: “não vê que não vê, não sabe que não sabe”.
Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político