O poder religioso
O Tribunal Superior Eleitoral está decidindo sobre um tema que gera polêmica: o poder religioso influi no processo eleitoral? Ora, basta estudar o fenômeno do psiquismo das massas para concluir pela verdade da hipótese. Não há dúvida. Quando se trata do mercado da fé, os contingentes religiosos acabam pagando, sem questionar o preço, o ingresso para entrar no paraíso sob a esperança de serem acolhidos pelo Senhor dos Céus. Antes, porém, rememoremos o que dizem os estudiosos das mentes.
Para Jung, as rápidas intuições que geram as decisões das pessoas são fruto de conteúdos subliminares. Explica isso pela existência das duas camadas no inconsciente: a individual, formada de lembranças apagadas ou recalcadas e de percepções estranhas à atenção (subliminares) e a superindividual ou coletiva, contendo as mais remotas imagens ancestrais, os arquétipos, que se relacionam às forças naturais, como o ciclo solar ou lunar, as ideias religiosas.
De Felice, um historiador italiano que escreveu uma obra em 4 volumes sobre Mussolini lembra: “Os efeitos fisiológicos e psíquicos de uma gesticulação levada até o delírio são comparáveis aos de uma intoxicação. As desordens funcionais assim introduzidas no organismo provocam vertigens e, finalmente, uma inconsciência total, que permite as piores loucuras. Às vezes, agitações desse gênero apoderam-se de reuniões políticas e provocam cenas tumultuosas, as quais recordam os espetáculos oferecidos pelas irmandades”.
Nas experiências de Pavlov, em laboratório, para que os reflexos condicionados pudessem se formar nos cães e gerar efeitos, era preciso que certas condições se efetivassem: o meio biológico, o lugar, o tempo, as características hereditárias dos indivíduos sujeitos às experiências. A cultura nazista abrigava tais fatores. Hitler encarnava certos complexos profundos do povo alemão, principalmente da classe média. Tinha necessidade de lidar com as massas em um nível inferior, quando, trabalhando sobre as condições fisiológicas, fazia mergulhar as multidões em estados quase hipnóticos. Dominava as massas pela violência psíquica. A propaganda nazista nada mais era do que a exploração da doutrina de Pavlov sobre reflexos condicionados.
Portanto, as mensagens formam impressões sensoriais, que vão se integrando a novos reflexos desempenhados por imagens, novas excitações auditivas e escritas, desencadeando processos múltiplos, reflexos de imitação. Pessoas fatigadas, cansadas, alquebradas, quando recebem uma ordem submetem-se passivamente à ela.
Os fenômenos de hipnose podem ser explicados por esse processo. Estudos concluíram, ainda, que as possibilidades de resistir às ordens e às sugestões dependem de graus de cultura, ou seja, da intensidade das cadeias de reflexos condicionados, enxertados uns sobre os outros. E mais: as massas ignaras constituem o melhor meio para a submissão aos reflexos condicionados.
Qual é a ferramenta usada pelos credos religiosos para obter adesão de suas audiências? A palavra falada e ancorada em estudada comunicação não verbal – signos para designar felicidade, medo, desgosto, tristeza, alegria, aplausos, coragem, surpresa. Pastores se transformam em articuladores de um discurso estético tão importante quanto o discurso semântico. O foco quase sempre é este: Deus acolhe os bons, os virtuosos, homens e mulheres de fé. Para fechar o circuito da argumentação, não raro são organizadas cenas de um exotismo hipnótico: expulsão de demônios, milagres na saúde, atos extravagantes, rituais de impacto sobre audiências entorpecidas.
O mercado da fé produz muito dinheiro. Credos e seitas multiplicam-se por todas as partes, principalmente em habitats ocupados por massas incultas e carentes. Mostrar o caminho dos céus a quem não tem quase nada é um exercício aprimorado pela miríade de pastores e bispos.
Alguém poderá objetar: mas os templos começam a receber classes médias e até gente do topo da pirâmide. Explico: a chama do divino, a esperança de outras vidas, o alcance do Céu formam a matéria central de todas as culturas, atraindo integrantes de classes pobres e ricas. E quanto mais misterioso seja a figura central da seita, mais adesão atrai. Veja-se o caso do João de Deus, hoje preso por abusar de suas pacientes.
Resposta final: sob essa teia de conceitos, os credos tendem a fazer política para defender interesses. A bancada religiosa é uma das maiores do Congresso. É evidente que esta situação gera um poder religioso, voltado para eleger o maior número de representantes. Este consultor não tem dúvida: esse poder quer comandar o país.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação Twitter@gaudtorquato