Uma cruz ou um milagre?

Participava de um evento e estava numa roda de conversa com outras pessoas. Não nos conhecíamos, mas certamente tínhamos alguma busca comum que nos havia levado a estar ali. Enquanto conversava, vi que um senhor me observava, aparentemente, querendo ser discreto. Olhava para mim, para minha esposa e para o lado. Olhava para a minha cadeira de rodas, para minha esposa e para o palco. Deu alguns passos, aproximando-se. E assim foi até que chegou ao meu lado. Fiz de conta que não o havia visto, porque intuía que a conversação com ele poderia ser uma situação embaraçosa. Ele tocou no meu ombro e perguntou:

O que aconteceu? Você nasceu assim? Referindo-se a minha condição de usuário de cadeira de rodas.

Na minha mente “Outra vez”, pensei. Nos quase quarenta anos que estou em cadeira de rodas não sei quantas vezes respondi a perguntas como essas. Nunca me indispus por isso, mas, às vezes, cansa. Educadamente expliquei que havia sofrido um acidente de carro na juventude. O senhor lamentou e considerou:

– Pelo jeito você aceitou a sua cruz!

Ao escutá-lo fiquei sem palavras. Não havia muito a responder, porque certamente a sua visão de mundo era diferente da minha. Ainda assim, a indignação foi o sentimento que nasceu em mim naquele momento. Perguntei-me, como poderia ele saber se era uma cruz? Respirei fundo para retomar a consciência, manter o controle e não dar poder ao outro sobre como me sinto, porque entendo a vida como um privilégio em qualquer circunstância, nunca uma cruz. Estar numa cadeira de rodas é uma cruz? Depende. Pode ser uma cruz, assim como outras situações podem ser. Para muitos trabalhar como farmacêutico, enfermeiro, professor, jornalista ou simplesmente trabalhar é uma cruz, para outros é uma oportunidade. Para muitos estar casado é uma cruz, para outros um sonho. Para muitos ter que levantar cedo é uma cruz, para outros é a chance de se exercitar. E assim poderíamos seguir citando casos em que as pessoas transformam situações que vivem numa cruz existencial. Particularmente, entendo de forma diferente. Nunca sonhei estar numa cadeira de rodas, porém a partir do momento que essa era a minha realidade optei por não a transformar numa cruz. No início, houve dor pelo acidente, tristeza pela irreversibilidade da lesão e luto pela perda que a situação representava. Alimentar tais sentimentos, transformando-os em estado de ânimo, poderia fazer com que o uso da cadeira de rodas fosse uma cruz. O luto é um processo para reconhecer a tristeza e superar a dor num movimento salutar de seguir o caminho com as possibilidades que existem. Lamenta-se a perda, que é uma verdade; olha-se para as possibilidades, a partir do amor; e se segue em frente, na busca pela paz. Desse modo, a vida nunca será uma cruz, sempre será um milagre.

Passado o impacto inicial da conversa com aquele senhor, aproveitei a presença de um conhecido para seguir em frente. Despedi-me desejando-lhe “tudo de bom”. Ele me devolveu, “Fica bem, sempre pode acontecer um milagre”. Ao escutar a frase, na minha interpretação, ele não havia entendido que o milagre acontece todos os dias quando escolhemos viver a verdade a partir do amor na busca pela paz com aquilo que temos. Entender que usar uma cadeira de rodas me permite ir a lugares que sem ela não posso ir faz com que ela não seja uma cruz, mas uma oportunidade. Assim, eu deixo de ser um cadeirante para ser um usuário da cadeira de rodas. Não me atenho as limitações, mas as possiblidades. Eis o milagre! Quais as possiblidades que a tua situação te oferece? Lembre-se que estar vivo é um milagre, é uma verdade. Manter uma vida ativa com relações sociais e pessoais permite que se viva o amor. Ter a consciência da verdade com amor gera paz.

A sua vida é uma cruz ou um milagre?

Moacir Rauber

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