Judoca veterana enfrenta lesão e falta de apoio para manter-se no tatame

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“Judô é um esporte de menino”, dizia a mãe de Fátima Belboni. Mesmo a contragosto, ela iniciou os treinos aos dez anos e nunca mais parou. Para continuar no esporte, começou a trabalhar ainda cedo, com aquela mesma idade em que entrou na arte marcial. Hoje, completam 54 anos de tatame, dedicação e persistência.

Ao longo da carreira, conquistou mais de mil medalhas e já viajou para 19 países, em busca do pódio. Para ela, representar o seu estado de São Paulo e o Brasil é sinônimo de orgulho. “A sensação de lutar no tatame é maravilhosa, faço aquilo que eu amo, ensino meus alunos e realizo meu sonho conquistando medalha de ouro para o Brasil”, comemora Fátima.

No entanto, representar o país em competições mundiais requer muitos desafios para ela. Dentre seus campeonatos, está o mundial de Frankfurt, na Alemanha. Para alimentar-se e arcar com as despesas, juntou garrafas de plástico e as vendia por um euro a unidade. O mesmo desafio se deu ao promover rifas e a vender chicletes na Avenida Paulista, junto com o seu técnico Robson Maciel para outras competições.

PREPARAÇÃO – Seu técnico, Robson Maciel, ressalta a obstinação da judoca que, mesmo com todas as dificuldades, não os usa como desculpa nos treinos. “Ela tem a mente blindada de campeã, é muito disciplinada e organizada. Ela entende os princípios das artes marciais. Como fui aluno de um professor japonês, treino a Fátima no estilo das artes marciais japonesas e não brasileiras. Acredito que isso tenha favorecido muito o seu desempenho nos campeonatos e em tudo que ela faz”, ressalta.

Robson destaca que “mesmo estando há bastante tempo com uma lesão grave no quadril, está em tratamento e não questionada nada nos treinos e nem se queixa”. A sua longa trajetória carrega o verdadeiro espírito do judô, o espírito dos Samurais, como reforça o treinador. “Diferente de muitos atletas mais jovens, inclusive brasileiros que treinam para as Olimpíadas e alcançam bons resultados em um curto período, a Fátima tem uma longa trajetória construída com perseverança.”

Dentre as memórias marcantes que o treinador tem com Fátima, destaca-se a sua convocação para o Mundial na Bulgária, valendo vaga para as Olimpíadas. Ela sofreu uma injustiça: teve o passaporte extraviado e foi forçada a perder peso de forma extrema, o que prejudicou muito seu desempenho. Isso impactou profundamente, especialmente porque ela treinava intensamente em uma academia simples — com treinos de até quatro horas, chegando a vomitar de exaustão, mas sem nunca reclamar.

Ainda para a sua preparação, a filosofia samurai japonesa é a sua guia, aliada com as técnicas de luta greco-romana. Ao aliar ambas, ela poderia competir em alto nível contra atletas cubanas, russas ou japonesas, destacando que, segundo Robson, Cuba e Japão são potências nesta modalidade, de forma em que Fátima foi preparada para entregar o seu melhor, tornando outro ponto marcante em sua trajetória.

O vínculo entre Robson e Fátima é uma forte parceria. Ela o considera uma aluna de verdade. Ele enfatiza que “no Japão, a gente usa o termo ‘curais’, que significa um vínculo mais profundo entre o mestre e o discípulo”. Não é à toa que ele enfatiza “faço tudo por ela, independente de dinheiro. Tanto que iríamos vender chicletes na Paulista novamente, se isso fosse preciso. Já disse a ela: se eu subir, ela sobe comigo”. Muito além, ele complementa o respeito e a conexão entre ambos. “Eu a considero como parte da minha família. Não é só parceria, é algo mais forte e profundo”.

SENSEI – Belboni também é sensei, professora de judô e educadora física. Seu aluno, Thiago Elísio Neves de Ataído, de 36 anos, recebe seus treinamentos há oito meses. Aos 18 anos ele havia praticado judô por um ano e meio, mas acabou parando. Anos depois, já sedentário e com quase 30 kg acima do peso, sentiu-se motivado ao assistir aos Jogos Olímpicos. Decidiu que era hora de mudar: sair de casa, procurar uma academia e voltar ao judô como forma de cuidar da própria saúde.

Foi assim que descobriu a academia onde Fátima trabalhava — sem saber, a princípio, quem era ela. E então veio a primeira surpresa: a sensei era uma mulher. A sensei, com seus 64 anos, superativa, lutando e participando de competições, foi uma inspiração. Ele, sedentário e fora de forma, viu nela um exemplo de energia, força e superação. Aquilo o motivou profundamente.

Somente aos poucos descobriu que, aquela professora do seu bairro, é uma multicampeã mundial. “São 17 títulos mundiais. Isso, sem contar as conquistas nacionais, estaduais e municipais. Ela já apareceu em diversos canais de TV e tem um histórico gigantesco. Fátima compartilha tudo isso com a gente no dia a dia. É alguém que respira o esporte, que entregou a vida para isso”, diz Thiago admirado.

O aluno considera a sensei uma verdadeira cuidadora. “Não no sentido de ser uma mãezona ou de mimar os alunos. Seu cuidado está em garantir que todos estejam sempre bem, que mantenham a integridade física sem que ninguém se machuque. Ela está menos preocupada em formar um campeão do dia para a noite, mas está focada em fazer com que cada um encontre seu próprio ritmo, sua própria forma de progredir, sem se lesionar no processo”.

Durante a preparação de Thiago para a transição de faixa, ele sentia que, apesar de tecnicamente estar quase pronto, ainda não estava fisicamente preparado. Embora já tivesse recuperado parte da forma, ainda se via acima do peso e achava que não merecia a progressão. Compartilhou esse sentimento de insegurança com a sua sensei.

Nesse período, passou a colaborar com ela em diversos projetos ligados ao judô: auxiliava nos treinos, montava e desmontava tatames, ajudava na organização da academia e em eventos. Foi então que, em um gesto marcante, Fátima disse que ele receberia a nova faixa, mesmo sem ter atingido o peso que ele havia estipulado como meta.

A atitude dela o tocou profundamente. Belboni demonstrou sensibilidade, enxergando além da performance física. Para ela, a evolução em uma arte marcial também se mede pelo comprometimento, transformação pessoal e contribuição ao coletivo. Ao reconhecer esse esforço, ela lhe ofereceu não apenas uma faixa, mas um verdadeiro voto de confiança.

Thiago percebe que sua treinadora se comporta como uma atleta de elite, como se fosse jovem ainda. “Existem outros atletas excelentes na faixa etária dela, mas muitos já têm uma energia diferente, uma atitude mais ponderada, talvez mais tranquila. Eles reconhecem o momento de vida em que estão, entendem suas limitações e tudo bem. Mas a Fátima não. Ela não se vê assim. Ela age, fala e treina como se estivesse no auge dos seus 20 anos. Ela é uma atleta de elite com mais de 60 anos e se comporta com a mesma garra e a mesma fome de vencer”.

APOIO– Cristiano Montovani é sócio proprietário de um restaurante que apoia Fátima, ao oferecer as refeições para a veterana no judô. Ele reconhece a importância deste apoio “hoje, no Brasil, os atletas de outros esportes — com exceção do futebol — sofrem muito para se manter, pois poucos conseguem patrocínios. E a Fátima se enquadra nesse perfil: uma atleta vencedora, mas sem apoio algum. Por isso, nós a ajudamos para que ela continue exercendo seu sonho e levando adiante seu legado. Ela é uma pessoa simples, guerreira, que conquistou tudo dentro dos tatames, mas que, infelizmente, não tem o reconhecimento merecido, mesmo diante de tantas conquistas”.

DIFICULDADES – Além de receber acompanhamento médico especializado no tratamento da lesão no quadril, conta também com apoio de fisioterapeutas. Apesar deste obstáculo, mantém-se obstinada na sua missão. Para manter-se, além de dar aulas de judô, a sensei passeia com animais de estimação e faz faxinas na região de Perdizes, bairro paulista em que mora.

Fátima sente-se frustrada com a falta de reconhecimento e apoio, seja de empresas e até mesmo de órgãos públicos. Thiago observa que “não importa se às vezes ela encontra pessoas dentro do esporte que não são boas pra ela. Não importa a falta de apoio, de patrocínio ou de reconhecimento. Ela nunca desiste. Ela continua sempre. Isso é algo que me marcou muito”.

Thiago admira a resiliência de sua mestre. “A gente ouve muito essas palavras por aí, mas, sinceramente, acho que ouvimos de uma forma um tanto leviana. Porque, quando se trata da sensei Fátima, essas palavras ganham um significado totalmente diferente. Veja: a maior parte das pessoas — eu me incluo nisso — quando se frustra com algo na vida, simplesmente muda de rota. A gente tenta uma coisa, não dá certo, então parte pra outra. É comum. A mudamos de caminho, mudamos de carreira, mudamos de planos. Mas a Fátima não. Ela dedicou a vida inteira ao judô. E ela segue dedicando”.

Em um cenário esportivo onde jovens atletas com maior aporte financeiro têm à disposição treinadores, equipamentos de ponta, viagens custeadas e ampla visibilidade, é fácil entender por que tantos alcançam destaque em pouco tempo. O investimento certo na hora certa pode, de fato, acelerar o caminho ao pódio.

Mas histórias como a de Fátima Belboni mostram o outro lado da moeda: o da resistência silenciosa e solitária de quem, já aos 64 anos, carrega no corpo as marcas da luta e no coração o amor incondicional pelo esporte. Sem patrocínio, reconhecimento institucional ou estabilidade financeira, ela segue fazendo faxinas, vendendo rifas e treinando com dores, tudo para continuar no judô — o mesmo que lhe ensinou a nunca recuar.

Se para um jovem atleta o futuro é promessa, para Fátima o presente é batalha. E ainda assim, ela não desiste. Porque, para quem vive o esporte como missão de vida, o apoio é bem-vindo, mas nunca foi condição. É por isso que a sua história vale ouro — mesmo quando o mundo insiste em não enxergar.

Da Redação

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