Grupos ativistas pelo direito ao aborto dizem que vitória no México pode inspirar luta nos EUA

As ativistas pelos direitos das mulheres na América Latina por muito tempo tiveram os Estados Unidos como modelo em sua luta de décadas para reduzir as restrições ao aborto em seus países altamente religiosos.

Mas depois de uma decisão histórica da Suprema Corte do México, que descriminalizou o aborto em âmbito federal, há quem pense que são as ativistas americanas que agora deveriam se voltar para o sul da fronteira enquanto tentam se orientar em uma realidade sem Roe v. Wade.

“Temos muita experiência no México”, diz Rebeca Ramos, advogada e diretora do GIRE, a organização responsável pela ação judicial no México. “E dada a situação atual dos Estados Unidos, é algo que podemos compartilhar com elas.”

A ONDA VERDE DA AMÉRICA LATINA

A América Latina está no meio de um movimento que vem sendo chamado de “onda verde”, à medida que países como México, Colômbia e Argentina vieram derrubando as principais restrições ao aborto nos últimos anos.

Por décadas, o verde é emblemático do movimento pelo direito ao aborto na América Latina, que começou nos anos 1980 na Argentina, um país que até recentemente tinha algumas das restrições mais rigorosas da região. Susana Chiarotti, ativista argentina, diz que originalmente propôs que a cor fosse adotada para a causa em 2003 como forma de mudar a narrativa em torno do assunto.

“É a cor que representa a vida, a natureza. Era uma forma de tentar mostrar que somos nós que defendemos a vida”, diz a militante, de 76 anos.

Chiarotti diz que ela e outras mulheres frequentemente se inspiravam nos Estados Unidos, usando, por exemplo, terminologia do caso Roe, a decisão histórica de 1973 que foi reformada em 2022, e se valendo das táticas tanto do movimento feminista do país, quanto do próprio segmento antiaborto.

Assim como os conservadores americanos trabalharam por décadas para reduzir gradativamente o acesso ao aborto e conduzir aos tribunais juízes conservadores, os grupos de defesa do direito ao aborto na América Latina adotaram uma abordagem semelhante, gradual e de longo prazo.

Enquanto as organizações de base reuniam manifestantes para tomarem as ruas, as lideranças buscaram apoio de grupos internacionais de direitos humanos e começaram a levar a batalha ao judiciário. Ao mesmo tempo, elas compartilhavam estratégias com outros grupos envolvidos em suas próprias lutas em outros países.

“Avançamos aos poucos por causa dos obstáculos imensos que precisamos superar”, diz Chiarotti.

A LUTA PELO ABORTO NO MÉXICO

Alguns países latino-americanos, como a Colômbia e o Equador, desde então já ampliaram o acesso ao aborto e reduziram as restrições. Outros, como o Chile, já avaliaram essas medidas, mas ainda não as colocaram em prática. E outros ainda, como El Salvador e Guatemala, têm uma legislação que proíbe totalmente ou quase totalmente o aborto, com poucas perspectivas de mudança no futuro próximo, ressaltando o longo caminho que ainda há pela frente na região.

Grupos de defesa do direito ao aborto no México tiveram sua primeira vitória 16 anos atrás, quando a Cidade do México se tornou a primeira jurisdição do país a descriminalizar o procedimento.

Dois anos atrás, então, a Suprema Corte decidiu que o aborto não poderia ser considerado crime no estado de Coahuila, na fronteira norte. Um processo gradual, estado por estado, de pressão pela descriminalização culminou na semana passada, quando o estado central de Aguascalientes se tornou o 12º a fazê-lo.

A decisão desta semana pelo tribunal superior envolveu uma ação movida pelo GIRE, um dos grupos mexicanos que colaborou com Chiarotti originalmente.

A decisão mexicana não é tão abrangente e imediata como foi a do caso Roe: ela não descriminaliza automaticamente o procedimento nos 20 estados onde o aborto ainda está inserido no código penal. Ela determina, porém, que a assistência de saúde federal, que oferece cobertura a 70% da população, preste o serviço de realizar abortos.

Marca ainda uma mudança drástica em uma sociedade predominantemente católica, que pode dar fôlego às ativistas em todo o país.

Apesar da proximidade entre o México e o estado americano do Texas, que restringiu drasticamente o acesso ao aborto, poucos esperam que a decisão dessa semana cause um fluxo de mulheres americanas indo abortar no país.

Cathy Torres, dirigente do Frontera Fund, uma organização de saúde reprodutiva perto da fronteira EUA-México em McAllen, Texas, diz que o acesso mais próximo ao procedimento para as mulheres de sua comunidade é no estado de Novo México, a 14 horas de estrada.

Ainda assim, “os abortos sempre aconteceram”, diz Torres. “As pessoas sempre encontraram uma forma de viver em uma região de fronteira. Elas não vão começar a ir para o México de repente.”

Algumas pessoas, porém, como Verónica Cruz, do grupo mexicano Las Libres, em espanhol, “mulheres livres”, diz que as ações cumulativas das ativistas mexicanas ofereceram às mulheres nos EUA mais alternativas de assistência, seja no México ou remotamente, que só devem aumentar com o tempo.

“A decisão da Corte (…) representa mais oportunidades para mulheres em regiões restritivas dos Estados Unidos”, diz.

DO ATIVISMO DE BASE À MUDANÇA DE LONGO PRAZO

Durante 23 anos, a organização de Cruz formou redes para oferecer serviços de tele-aborto, em que mulheres realizavam abortos medicamentosos sob orientação de ativistas através de uma ligação. Era uma forma de resistência contra a legislação mexicana, diz.

Alguns dos pedidos por essa assistência também vieram dos Estados Unidos, principalmente do Texas, e, desde a reversão do caso Roe, esse número saltou de 10 por dia para cerca de 100. Cruz diz que esse tipo de rede e as campanhas de orientação serão cruciais para as ativistas americanas.

“Não podemos deixar de sair às ruas, e precisamos continuar a trabalhar de mulher em mulher, de casa em casa, de família em família, de comunidade em comunidade”, explica. “Com as instituições, há sempre o risco de que (nosso trabalho) seja destruído.”

Ramos, do GIRE, também considera que a experiência mexicana oferece lições para as ativistas dos EUA que agora precisam lutar pelo aborto em âmbito estadual. Construir o apoio lentamente, com o objetivo de efetuar mudanças políticas de longo prazo, é essencial, segundo ela.

“O que eu acho que podemos compartilhar é exatamente a necessidade de que os Estados Unidos planejem estratégias em nível local”, diz Ramos.

Mexicanos religiosos e conservadores ainda se opõem frontalmente à ampliação do acesso ao aborto. Em alguns casos, grupos americanos também vêm expandindo o ativismo antiaborto para o México e outros países da América Latina.

“A legalização do aborto corrói os fundamentos do estado de direito e distorce o conceito e a prática dos direitos humanos”, afirmou na quinta-feira a cúpula da Igreja Católica do México, em um comunicado.

Os grupos em defesa do direito ao aborto não são os únicos a observarem com grande interesse os acontecimentos nos Estados Unidos. Os ativistas da Associação Civil pelos Direitos dos Concebidos, por exemplo, estão adotando uma perspectiva de longo prazo sobre a decisão do tribunal esta semana.

“Não vamos parar”, diz a diretora do grupo, Irma Barrientos. “Vamos lembrar o que aconteceu nos Estados Unidos. Depois de 40 anos, a Suprema Corte reverteu sua decisão sobre o aborto, e não vamos parar até que o México garanta o direito à vida desde o momento da concepção.”

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